A MARCHA DO APARTHEID: UM PAÍS DIVIDIDO PELO APAGÃO DEMOCRÁTICO –

Tarde de intenso calor. A rua da Imperatriz, no Recife, ainda é capaz de mostrar as sombras do seu casario. Outrora, foi uma via de intensa movimentação, hoje presente apenas no imaginário fantasmagórico dos centros urbanos. No seu traçado retilíneo, uma padaria resiste e se impõe numa moldura ilusória daquilo que foi o agito de um passado não tão longínquo. Entro e sento, apenas para beber uma água e me refrescar, diante de um sol escaldante.

A dura realidade da velha rua me trouxe outra surpresa, em forma de consagração do desencanto. Ao meu lado, um morador de rua me pede atenção. Pensei que fosse sede. Mais do que isso: a fome estava estampada num rosto amargurado. Foi contido no apelo. Um pão com manteiga e um café lhe satisfaziam. Tomei a devida providência e, antes de sair, ouvi dele que a opção de sobrevida nas ruas não lhe cabia. Perguntei, então, sobre o tal o auxílio público. Ele me disse não ter conseguido o cadastro, mas foi incisivo nas palavras finais que expressaram seu valor cidadão: emprego.

Bem que poderia me prolongar nessa história, porque tive subsídios para tal. No entanto, tenho elementos suficientes para expor o resultado de algumas reflexões que fiz a respeito. Da situação dele, mesmo que exposta de modo tão particular, pude extrapolar para uma cruel realidade nacional. Uma múltipla fratura exposta em forma de politicas sociais, temperada por um projeto autocrático que age para dividir o Brasil, em várias frentes.

O caso que expus do morador de rua talvez seja a faceta mais presente num clima de Brasil dividido, por conta de uma longevidade histórica. Por mais que tenhamos registros mais consoladores a respeito. Refiro-me à desigualdade de renda em toda sua extensão, sobretudo, quando ela exprime a intensidade maior ou menor das oportunidades de trabalho, dos baixos rendimentos, dos níveis de pobreza e dos padrões de insegurança alimentar.

Claro que temos uma questão estrutural por trás, mas no bojo de politicas sociais conceitualmente falhas e seguramente populistas, uma face real do apartheid brasileiro ficou escancarada. Na perspectiva atual de se referenciar o ambiente social como “bolhas”, estão mesmo mais explícitas as contradições entre ricos e pobres. Agora, mais profundamente distanciados pelo maniqueísmo polarizador de um embate eleitoral de turnos intermináveis. Desde 2014.

Minha percepção dessa epopéia social inspirada naquele morador de rua, não esgota minha decepção por enxergar o país ainda mais dividido. Os conflitos gerados pela sociedade atingem proporções perigosas, suficientes para que “lobos solitários” ou “rebanhos desajuizados”, minimamente motivados pela inconsistência das falsas teses, sejam capazes de expelir seus desejos beligerantes.

Assim, a moldura desse fracasso, na construção recente de um modelo de sociedade, encontra-se amparada em argumentos que, ao exagerarem na dose de um individualismo tipo narcisista, têm servido para reforçar os riscos de um supremacismo superado. À exacerbação do conflito entre ricos X pobres, juntam-se as questões raciais, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e outras mazelas não menos preocupantes. Desse modo, a divisão social ganha dimensão e só faz aguçar rivalidades e agressões. Tudo como decorrência de discursos políticos que só contribuem para a segregação.

É perceptível o quanto foram intensificados no cotidiano as cenas de violência. São mulheres, crianças, pretos, nordestinos e homossexuais vitimados por agressões diárias, numa crueldade tal, que faz com que eles vivam nas suas respectivas bolhas, em dessintonia com a diversidade e interatividade. O projeto de um Brasil respeitoso e plural parece se revelar como miragem.

A percepção de um apagão democrático, já em ritmo preocupante, pôs em marcha a amplitude de um apartheid indesejado. Em memória de tantas vítimas conhecidas (Marielle, Genivaldo, João Alberto, Dom, Bruno e outros) e de tantos outros anônimos, é preciso ter tempo para mais justiça e união. De verdade, dividido do jeito que está, o Brasil irá parar no tempo.

Faço parte de uma geração que em breve fechará seu ciclo, com tão triste testemunho. A marcha desse apartheid social em curso e com tanta amplitude, só contribui para sedimentar um déficit civilizatório que se esperava vencido.

Tudo isso dói em mim e nos corações civis, justo dos que veem patriotismo na essência do bem viver de cada cidadão. E não nos valores e mitos criados para reverências fanáticas e subservientes.

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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