A Barbárie da Fome é a História de uma Figura Repetida e Carimbada –

O Álbum da Desumanidade Precisa Ser Abandonado

Um assunto que hoje me espanta, até porque o julguei superado pela minha limitação cognitiva, trata da retomada da fome. Surpreendo-me com os números que mostram o retorno do Brasil ao mapa mundial de todas adversidades que expliquem a insegurança alimentar. Hoje, o quadro mais parece uma situação de que não se saiu do ponto, como se o país tivesse se mantido imóvel, o que não é verdadeiro. Numa forma respeitosa de descontração, daria até para simular aquela máxima de que o quadro tipifica bem a “volta dos que não foram”.

Cabe a ironia do palavreado. Isso porque as politicas públicas para as situações de estrangulamento social parecem não entender bem as razões. Nem das consequências decorrentes de medidas econômicas. Nem mesmo para que servem as políticas sociais. Diante disso, como encarar a realidade que está descrita no novo relatório da ONU sobre o drama da fome pelo mundo, que atinge em cheio o Brasil?

De fato, entre 2019 e 2021, conforme prediz aquele documento, atingimos a infeliz marca de contarmos com 60 milhões de compatriotas em regime de insegurança alimentar. Pior que isso, só mesmo a consagração de um status indesejado – o de ter o país retornado ao chamado mapa da fome no mundo. Incrível. Afinal, o país que sempre foi do futuro e que bate no peito para dizer que é gigante na produção e exportação de um leque que vai de aviões a commodities, tem também essa mácula por carregar. É incapaz de por comida no prato de uma outra nação, cujos partícipes foram excluídos por falta de planos, de programas assistenciais bem definidos e um olhar para o futuro capaz de apagar tamanha mácula. Diga-se ainda de passagem: um mal que tem gênero, raça e CEP. Nada tão desigual.

Como diria um certo personagem da “Escolinha do Professor Raimundo” , que “não me venham com chorumelas”. Exercitar o “esporte nacional” da transferência de culpas não cabe aqui, apesar de algo naturalmente impactante, como foi o caso da pandemia. Isso porque o buraco sempre esteve mais em baixo, seja pela falta de planejamento, como pela ausência de programas sociais efetivos., com seus olhares voltados para os vulneráveis.

Dw fato, o que se extraiu desse caldo foi um crescimento econômico raquítico, que esteve mal acompanhado devido à elevação das taxas de desemprego, juros e inflação. Assim, sem que a macroeconomia fosse levada a contento, a cruel combinação de falta de empregos e alta geral dos preços foi consagrada. Tudo isso serviu de estímulo para que a desigualdade e a pobreza fossem resgatadas para níveis preocupantes. Faltaram estratégias e revisões conceituais que dessem firmeza ao controle macroeconômico e efetividade numa politica social que priorizasse os verdadeiros excluídos.

Entendo que a fome representa uma das figurinhas mais indesejadas do álbum da vida. Se o poeta Quintana a reconhecia como um mal da cegueira, justo por quem “não via o próximo morrer de fome, frio e miséria”, para o genial Saramago “a fome seria a maior obscenidade entre os humanos”. Agir cegamente e de modo obsceno são mesmo situações comuns às políticas, que não conseguem ou sabem lidar com a figurinha repetitiva e carimbada da fome. É preciso, então, muito compromisso para fazer o descarte dessa barbárie.

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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