PONTO DE VISTA DE ALFREDO BERTINI

ENTRE DISSENSOS E CONTRASSENSOS, NEGAM-SE A CIÊNCIA, O CLIMA E O CENSO I –

Ainda que envolvida no contexto de uma pandemia, a sociedade brasileira enfrenta graves situações em áreas distintas, em larga medida associadas à própria crise sanitária. Destaco aqui mais um fio condutor dessa pauta: o descrédito na capacidade da ciência. Tem sido lamentável assistir que a falta de interesse do governo em tratá-la com o devido mérito, contagiou parte da sociedade, que tem-se mantido indiferente às conquistas científicas.

De fato, são muitos dissensos e contrassensos, no geral produzidos através de doses repetidas de desdém. Exemplos extensivos recentes disseram respeito às velhas adversidades nas questões climáticas e também no abandono da pesquisa censitária, temas que só reforçaram o desapego governamental pela causa da ciência.

Historicamente, a pesquisa científica sempre foi objeto de dúvida dos distintos poderes. Negar, desacreditar ou contestar foram verbos conjugáveis, por mais que a pesquisa e a inovação científicas dessem repetidas demonstrações de importância para os avanços sociais e econômicos.

Como exemplo dessa resistência histórica contra a ciência sugiro que se assista ao filme “Radioactive”, disponível numa plataforma de “streaming”. No filme, a luta da polonesa Maria Salomea Sklodowska, assumida como Marie Curie (pelo casamento com o cientista Pierre Curie), em resposta ao tratamento preconceituoso de ser mulher, judia e se “aventurar” nos experimentos físicos e químicos, foi garantir à França dois prêmios da grandeza de um Nobel. Aliás, na condição de ser a primeira mulher que conquistou tamanha láurea (1903, Nobel de Física) e a única até hoje, na lista de todos premiados, a contar com outra na área científica (1911, Nobel de Química).

A história da Madame Curie extrapola seu sentido exemplar, pelos enormes tabus que sua genialidade foi capaz de superar. Mas, acho vital acrescer às suas soberbas conquistas um valor que, por mais incrível que pareça, ainda provoca reações, um século depois. Refiro-me ao valor expresso pelo desafio de perseverar diante dos incrédulos. Atitude natural de quem faz ciência e que em muitas vezes se mostra competente para exercer genialidades transformadoras.

Com isso, quero aqui dizer que o desafio de Marie (e de Pierre) contra todos que lhe(s) negaram apoio acadêmico, político e econômico, parece não ser diferente ao que se vê hoje, sobretudo, numa parte da sociedade brasileira favorável às teses negacionistas. Têm-se exemplos em fartura, como o insolente sentimento anti-vacina, a perversa adesão ao climatismo e outros movimentos inversos à dinâmica científica. Conceitos construídos sem limites, na intenção de arrebanhar ineptos, não obstante tantos avanços gerados pela ciência. Sobrevive daí uma realidade de dissensos e contrassensos, capaz de afrontar o mínimo senso da racionalidade.

Vou direto aos fatos, no que tange aos investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia. Os números desanimam e poderão propiciar um atraso de 5 anos ou mais, com efeitos danosos à economia. Pelo prisma dos cortes orçamentários, nota-se a brutal redução dirigida aos principais institutos de apoio à pesquisa no ambiente universitário: a CAPES e o CNPq. Entre 2019 e a proposta orçamentária de 2021, os valores destinados tiveram cortes substanciais. Na CAPES, de R$ 4,2 bilhões para R$ 1,9 bilhão. No CNPq, de R$ 1,2 bilhão para R$ 560 milhões. Isso sem falar no represamento de R$ 5,1 bilhões do fundo setorial (FNDCT) e do fato de cientistas e pesquisadores, inclusos três ganhadores do prêmio Nobel, manifestarem-se por carta aberta para defender a ciência no Brasil e criticar a atuação do governo diante da pandemia. Ofício do caos.

Desse modo, a ciência no país caminha célere para um apagão. Sem reajustes nas bolsas desde 2013, atrasos de pagamentos e cortes gerais, os melhores talentos continuam a migrar para onde o prestígio se mostre digno. Nesse ritmo, a pós-graduação sem pesquisa representa uma aposta natimorta, bem ao estilo dessa assombrosa necrofilia que tomou conta do país.

Na próxima coluna, continuarei com esse apagão na ciência, focado nas questões climáticas e na ausência do censo.

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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