Onde foi que os EUA erraram no Afeganistão –

Quando os EUA invadiram o Iraque, em 2003, os assessores de George W. Bush para o Oriente Médio fizeram algumas avaliações equivocadas sobre o conflito. Em duas dimensões. A primeira foi de ordem comparativa. Acreditaram que, assim como a Alemanha nazista e o Japão autoritário transformaram-se em sólidas democracias, o mesmo poderia ocorrer com Iraque e Afeganistão. Tudo seria uma questão de desenho institucional apropriado.

Engano. Os especialistas esqueceram que a existência de um Estado funcional precede a existência de uma democracia liberal. Afinal, a raiz da palavra estado é a mesma de estabilidade. Não havia esse tipo de Estado no Iraque, como não há no Afeganistão. A começar pelo fato de o governo ser flagrantemente corrupto e favorecer uma minoria. A comunidade rural pashtun (maioria étnica da população afegã), reduto do poder do Talibã, nunca foi devidamente contemplada pelas benesses do poder norte-americano.

Tanto o Japão quanto a Alemanha tinham Estados firmes, com sólidas burocracias que tocavam as máquinas do poder autoritário. Houve uma troca do regime político. O Afeganistão é um Estado falido, que não consegue nem ao menos estabelecer o monopólio da força física em todo o seu território.

A “construção de uma nação” (nation building) é um processo muito mais complexo e demorado. Afora isso, a questão cultural foi menosprezada, como se os nativos estivessem dispostos a seguir prima facie os valores da democracia liberal ocidental. De última hora, os EUA contrataram antropólogos com o intuito de ajudar a conquistar os corações e mentes da população local. Como lembrou o ex-chanceler alemão Konrad Adenauer, “a História é a soma de tudo aquilo que poderia ter sido evitado”.

Os erros cometidos no Iraque poderiam ter sido evitados no Afeganistão. Contudo não foram. E, apesar de investir trilhões de dólares e de arcar com perdas em vidas humanas, os EUA ignoraram equívocos anteriores. Tentaram uma guerra de longa duração. Treinaram a polícia e os militares afegãos para que pudessem defender o governo fantoche, assim que os EUA partissem de lá.

O entusiasmo era tão grande com esse modelo americano que o então secretário de Estado, John Kerry, propôs, em 2013, ao então primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, uma ida secreta ao Afeganistão para conhecer tal projeto de segurança. Kerry queria convencer Bibi de que o mesmo modelo poderia ser aplicado aos palestinos, caso Israel concordasse em sair da Cisjordânia. A proposta foi prontamente recusada por Bibi, e ele vaticinou que o Estado afegão colapsaria tão logo os EUA retirassem suas tropas. Bingo. Também disse que o Afeganistão voltaria a ser um santuário para os terroristas. Isso ainda falta ser comprovado. Tudo indica que Bibi acertará em seu segundo vaticínio.

Em julho passado, o presidente Joe Biden disse não esperar a tomada de poder pelo Talibã, pois havia cerca de 3 mil homens bem equipados no Exército afegão. Um mês depois, a inteligência americana previu a queda do governo para 90 dias. Levou apenas cinco. Foram jogados fora cerca de US$ 83 bilhões para aprovisionar o Exército e as polícias afegãos.

Donald Trump estava bastante desejoso de deixar o país por causa das eleições. Pouco se preocupou em impor condições adequadas para o acordo de paz assinado, em 2020, entre o governo afegão e o Talibã. Biden deu continuidade à saída sem imaginar, contudo, que o governo afegão derretesse tão rapidamente. Aí incluída a fuga do presidente pró-Ocidente Ashraf Ghani, que sentiu cheiro de carvão.

O Talibã pressentiu a fraqueza americana e foi ganhando territórios à medida que as tropas dos EUA iam sendo evacuadas. Desse modo, convenceram os soldados afegãos de que seria melhor eles desertarem, pois não contariam mais com o guarda-chuva militar americano. E de nada adiantaria continuarem a lutar. Era racionalmente melhor desistir e salvar suas famílias. E assim chegaram, sem maiores problemas, a Cabul. A China agradece.

 

 

 

 

Jorge Zaverucha – Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco

 

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