OS SANTOS MÁRTIRES NO CONTEXTO DO BRASIL HOLANDÊS – Jean-Paul Prates

OS SANTOS MÁRTIRES NO CONTEXTO DO BRASIL HOLANDÊS –

Sem absolutamente desmerecer ou diminuir a importância, tanto histórica quanto eclesiástica, da canonização dos 30 santos mártires de Cunhaú e Uruaçu (RN), hoje, pelo Papa Francisco, gostaria de apenas propor a reflexão sobre algumas generalizações e desinformações que têm sido repetidas quanto ao episódio.

Morticínios por razões religiosas não eram incomuns, como todos sabem, à época (aliás, o que mudou?).

Tanto na Europa (as guerras e perseguições religiosas entre católicos e protestantes, perseguições a judeus e muçulmanos) quanto nas colônias (como reflexo das tentativas de expansão religiosa e territorial, e no exercício de catequese forçada de populações locais), houve massacres de todos os lados.

Ação e reação não são um princípio apenas da Física, mas da História também.

Ao menos cabe reparar que os holandeses ocuparam o Nordeste brasileiro a partir de Recife entre 1630 a 1645. Calvinistas, não vieram atrás de conquistas territoriais e muito menos em missão religiosa:

1. A União Ibérica os levara a proteger os interesses da Companhia das Índias Ocidentais, responsável por mais de 2/3 do comércio de açúcar brasileiro. Os holandeses também eram donos da maioria das refinarias de açúcar da Europa, necessitando, portanto assegurar a produção da matéria prima indispensável.

2. Apenas dois anos depois de estabelecerem no Brasil, tomaram Natal e seu Forte dos Reis Magos (convertido em Castelo de Keulen), com vistas a garantir abastecimento de carne e couros para a sua capital.

3. Ali estabeleceram uma administração local (que respondia diretamente a Mauricio de Nassau) e uma Câmara de Escabinos (espécie de câmara municipal, responsável pelo controle civil urbano), que, com outras estabelecidas de Sergipe até o Maranhão, formavam a primeira assembleia legislativa das Américas, sediada em Recife.

4. Nassau marcou época como governador tentando realizar uma política conciliatória entre holandeses e portugueses, além de oferecer liberdade de credo para católicos e judeus. Entretanto, isto não impossibilitou uma crescente onda anti-semita baseada na ideologia religiosa e no poder social e econômico que os judeus adquiriram com o tempo.

5. O governador holandês combateu a oligarquia local dos senhores de engenho, incentivando o crescimento de uma nova classe dominante, burguesa mas ainda assim católica – com minoria holandesa e calvinista. Deste modo, foram combatidas a monocultura e a fome.

6. Todo o interior, entretanto, ainda era tomado pelos portugueses que tinham o conhecimento (e a propriedades) da produção da cana-de-açúcar e, consequentemente, a economia em suas mãos – enquanto o poder institucional estava nas mãos dos holandeses.

7. Sem interesse em conflitos, o governo holandês sempre ofereceu, tanto aos imigrantes quanto aos senhores de engenho portugueses que não fugiram para a Bahia, diversos incentivos fiscais e financiamentos a prazo para a reconstrução dos engenhos arrasados pelos combates, gado morto e escravos fugidos.

8. Embora sempre com desconfianças mútuas, os holandeses nunca afirmaram abertamente ser conta os portugueses, mas, por serem de maioria calvinista, entendiam como estratégico a seus interesses combater a expansão da fé católica no Novo Mundo. Conhecendo o poder das ordens religiosas, degredaram as principais, especialmente a Jesuíta.

9. No entanto, não foi preconizada a perseguição direta, pois a religião predominante dos portugueses era a católica e não lhe interessava estender o conflito. Nassau permitiu nas cidades a realização de missas “a portas fechadas”. No interior, com o enorme poder dos portugueses senhores de engenho, a política religiosa era ainda menos restritiva.

10. Outro fato relevante, é que a colonização holandesa, após a invasão, não se deu somente com a vinda de holandeses. Era incentivada a vinda de populações principalmente protestantes, como ingleses, franceses e escoceses. A vinda de judeus para a região também foi grande. Protestantes, católicos e judeus casavam-se entre si e muitas vezes um dos elementos do casal mudava de religião para acompanhar o outro.

11. Uma das bases da política colonizadora holandesa foram as alianças com os índios, que eram anti-portugueses devido à escravidão indígena. Antes mesmo da invasão, a Companhia das Índias Orientais definiu que todo índio em terras conquistadas teria direito à liberdade. Assim, praticamente todas as tribos se tornaram guardas das fronteiras do território holandês, ao norte, sul e oeste. Além disso, os índios também eram informantes das riquezas minerais e da geografia da região dominada. É interessante observar que apesar de aliados, os índios do Rio Grande do Norte, os tapuias, eram também temidos pelos holandeses, devido à sua “selvageria e violência”.

12. Mauricio de Nassau não era holandês, e sim alemão (considerada a geografia moderna). Foi conde e (após 1674) príncipe de Nassau-Siegen, um Estado do Sacro Império Romano-Germânico e mais tarde da Confederação Germânica, localizado nas cercanias das cidades de Wiesbaden e Coblença. Sua formação protestante, além dos laços de parentesco com famílias nobres neerlandesas, levaram-no a ingressar, em 1621, na carreira militar a serviço dos Países Baixos.

Tendo tudo isso como contexto, os fatos de Cunhaú e Uruaçu merecem bem mais cuidado de análise e relato do que meramente um episódio de perseguição e fervor religioso.

O primeiro massacre aconteceu na Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho de Cunhaú, em Canguaretama, cidade a cerca de 65 km de Natal. O segundo teve lugar no porto de Uruaçu, pequena comunidade às margens do Rio Potengi, no atual município de São Gonçalo do Amarante, vizinho a Natal.

Até 1644, tudo correu em relativa paz na terra comandada pelo Castelo de Keulen. Portugueses nos engenhos, holandeses no Forte, em Natal. Mas as consequências da restauração da coroa portuguesa em 1642 não tardaram a chegar. Dois anos depois, Maurício de Nassau retornou à Holanda. Paul de Linge assume o controle da PB e do RN em 1645. Com o S Francisco perdido, a gadaria do Rio Grande passa a ser ativo estratégico.

Ao tomar conhecimento do rompimento do trato entre Portugal e Holanda, ressurge do sertão Jacob Rabbi, o negociador junto aos Tapuias. Oportunista e alistando indígenas raivosos, Rabbi inicia várias campanhas de assaltos, destruição e mortes, aterrorizando comunidades locais. O comando holandês não coibiu tais ações. Saqueando e roubando, Rabbi acumulou imensa fortuna em gado, roupas, terras, jóias e dinheiro.

Incontrolada, a milícia de Jacob Rabbi cometeu o traiçoeiro massacre na missa na Capela de Nossa Senhora das Candeias, atual Canguaretama. A situação dos fiéis trucidados, pegos de surpresa e sem saída, levou ao martírio com atos e palavras de grande fervor e entrega à fé cristã. Entretanto, não há evidências de que o grupo, majoritariamente indígena e liderado por um mercenário judeu-alemão, tenha sequer exigido conversões. Eclesiasticamente, isso não invalida o ato heróico e de fé dos mártires, mas criminalizar “os holandeses” pode ser simplificação injusta.

O massacre de fiéis na capela de Cunhaú tem mais componentes de ato terrorista do que de uma perseguição ou conversão religiosa compulsória.

Já o segundo massacre, no porto de Uruaçu, tem características de justiçamento ou execução de rebeldes, e convalidada pelo comando holandês. Neste, um grupo de prisioneiros do Forte Keulen foi agregado a outro, que se refugiara em Uruaçu com medo da onda aterrorizante de assaltos.

Primeiro, o mesmo Jacob Rabbi perseguiu refugiados de Cunhaú até Uruaçu (porto às margens do Rio Potengi), e não logrou abatê-los ali mesmo. Precisou, mais uma vez, usar de um ardil maldoso: veio ao Forte e conseguiu dos holandeses dois canhões, com os quais ameaçou os refugiados. Apontando seus dois canhões e prometendo-lhes preservar a vida e levar-los ao Forte, Rabbi conseguiu que as 70 pessoas saíssem do seu refúgio. Os resistentes renderam-se e a milícia de Rabbi os conduziu à Fortaleza, onde foram reunidos a outros presos e refugiados.

Em 03 de outubro de 1645, doze homens foram levados rio acima até Uruaçu. Desceram e foram executados com refinamentos de tortura. Ali foram executados Padre Ambrósio Francisco Ferro, vigário de Natal, e os demais, com atos de tortura e confirmações heróicas da fé cristã.

Os massacres foram tão covardes e atrozes que o próprio comando holandês condenou a liderança de Rabbi, tramou e executou seu assassinato. Um detalhe é que, em Cunhaú, a milícia de Rabbi executou também João Lustau Navarro, sogro do comandante holandês do Forte: Joris Garstman. O engenho Cunhaú, saqueado após o massacre, pertencia ao comandante Gartsman que julgou ousadia de Jacob Rabbi atentar contra sua propriedade.

Gartsman planejou a morte de Rabbi convidando-o para um jantar onde este foi executado por um alferes, a tiros de pistola e golpes de espada. A morte do amigo dos índios locais causou profundo desgosto às tribos aliadas dos flamengos. Os tapuias exigiram a punição dos culpados. O Supremo Conselho abriu inquérito e, apontando a responsabilidade de Gartsman, prendeu o governador e o mandou de volta para a Holanda. Ao cacique Janduí, entregaram 200 florins, mil varas de fazenda, cem galões de vinho e 40 de azeite, 2 pipas de aguardente e uma barrica de carne salgada.

 

Jean-Paul Prates – Consultor em Energia e Presidente da CERN e do SEERN

 

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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