O GIGANTE, A RAINHA E A CASA –
Meu pai era um homem grande. Não grande no sentido espalhafatoso, desses que fazem questão de ser vistos, mas grande porque tudo nele parecia bem assentado, como uma casa antiga construída com pedras marroadas e paciência.
Chamava-se Francisco das Chagas Pereira, mas quase ninguém dizia o nome inteiro. Chico bastava. Algumas vezes, “o professor”. Outras, “o doutor”.
Para mim, era apenas meu pai, esse homem que parecia carregar o mundo nos ombros e, mesmo assim, entrava em casa como quem pede licença.
Nasceu no Seridó, onde a vida costuma ensinar cedo que nada vem de graça. Timbaúba dos Batistas era pequena demais para explicar o tamanho do menino que crescia ali.
Filho caçula de uma família pobre, aprendeu desde cedo que esforço não se anuncia, se pratica. Viu o pai carregar água em lombo de jumento e viu a mãe transformar escassez em dignidade.
Guardou tudo isso em silêncio, como quem entende que o essencial não precisa ser dito.
Nunca soubemos de onde veio aquela inteligência tão disciplinada. Não era brilho espalhado, era luz contínua. Talvez herança de sua origem judaica, milagre discreto ou o resultado de alguém que nunca se permitiu fazer nada pela metade.
Quando o bispo apontou o dedo e disse “é esse”, ninguém imaginava que não estava escolhendo um padre, mas um homem movido por método, rigor e curiosidade infinita.
Meu pai chorou semanas no seminário, afastado da mãe. Parou de chorar e descobriu que estudar era uma forma silenciosa de resistir ao mundo.
Nunca teve pressa nem vaidade. Teve constância.
Estudava como quem cumpre um compromisso íntimo: Filosofia, Letras, Direito. João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Paris. Ia passando pelos lugares como passava pelos livros: com atenção, respeito e sem ruído.
Havia nele algo curioso: frequentemente, quando se submetia a um concurso, passava. E quase sempre em primeiro lugar. Não porque competisse com os outros, mas porque parecia competir apenas consigo mesmo.
Não comemorava em público, nem comentava. Voltava para casa e seguia a vida, como se aquilo fosse apenas consequência natural de fazer bem o que precisava ser feito.
Foi na Maison de France, no Rio de Janeiro, que conheceu minha mãe.
Selminha entrou na vida dele como quem adentra um ambiente já organizado e o torna ainda melhor. Inteligente, erudita, afetuosa, dona de uma alegria sem afetação.
Também nela havia excelência, mas uma excelência solar, que acolhia em vez de intimidar. Planejava aulas rigorosamente, executava com graça, escutava atentamente. Nunca precisou se impor. Bastava estar presente.
Começaram amigos, se apaixonaram depois. Não houve espetáculo, mas reconhecimento. Dois adultos que se enxergaram e decidiram caminhar juntos.
A admiração mútua era algo extraordinário e visível a todos.
Casaram-se como quem assume um projeto comum, sem discursos, mas com absoluta certeza e lealdade.
Voltaram para Natal para ensinar. Meu pai ensinava do jeito que vivia: sem atalhos. Na universidade, na escola técnica, nos conselhos, nos cargos públicos, atuava como quem não deixa sujeira nem barulho.
Assumia responsabilidades pesadas com uma serenidade que impressionava mais do que discursos inflamados. Era avaliado e respondia; era testado e passava. Quase sempre em primeiro.
Minha mãe seguia a mesma lógica, embora com outro tom. Também ela construiu sua trajetória sem empurrar portas, sem pedir aplausos. Sua excelência aparecia nos depoimentos dos alunos, no respeito dos colegas e na memória de quem foi tocado por ela.
Não era diferente nas colocações dos concursos.
Quem teve Selminha como professora carregou algo dela para sempre, sem perceber quando aprendeu.
Ela ainda tinha o dom da irreverência. Um dia, na praia de Muriú, após ouvir meu pai chamar de loucura um voo de ultraleve, decidiu mostrar que a vida também pede ousadia.
Minutos depois, voava sobre a casa, na mesma aeronave, rindo e gritando o nome dele. Meu pai quase infartou! Depois sorriu. Sempre ria. Sabia que ali estava algo que não se controla: alegria genuína.
A vida caminhava bem até o dia em que resolveu ser abrupta. Um tumor interrompeu o percurso do gigante quando ele, na época, era Desembargador Federal e presidia o Tribunal Regional do Trabalho do RN. Tinha livros por escrever e muitas aulas por dar…
Meu pai se foi cedo. Não fez drama nem cena. Saiu como viveu: com dignidade silenciosa.
Minha mãe ficou.
E ficar, por vezes, exige mais força do que saber que vai.
Foram momentos difíceis.
Houve um tempo, e não foi curto, em que Selminha ficou abatida.
Dois anos, talvez mais, em que a casa continuava de pé, mas o riso demorava a chegar. A ausência do gigante Chico Pereira pesava nos móveis, nos corredores, nos horários. Não se perde um homem assim sem que o silêncio cobre seu preço.
Ela sentiu profundamente, como só quem amou de verdade é capaz de sentir.
Até que, num desses momentos que não têm data nem cerimônia, minha mãe entendeu. Não racionalmente, entendeu com o corpo, com o afeto, com aquela inteligência emocional que não se aprende em universidade alguma.
Ela percebeu que, sem papai, ela havia se tornado o elo. O ponto de sustentação. A linha invisível que mantinha todos ligados.
E, a partir desse entendimento, algo mudou.
A tristeza não desapareceu. Ela apenas reagiu… Selminha voltou a rir, não por esquecimento, mas por escolha. Voltou a se interessar pelos outros com intensidade maior.
Passou a estar disponível de um jeito quase comovente. Quem precisava, no momento necessário, encontrava nela um lugar seguro.
Era ela quem ligava.
Era ela quem perguntava.
Era ela quem percebia antes.
E, ao aparecer, surgia inteira: firme, forte, lúcida, com um sorriso estampado no rosto que precedia as palavras. Um sorriso desses que não nega a dor, mas mostra que ela foi atravessada.
Minha mãe não se recolheu; expandiu-se.
Fez mais. Decidiu que a família precisava se reunir não apenas nas urgências, mas na alegria. E resolveu bancar, verbo forte e exato, uma grande viagem anual.
Uma daquelas viagens que não são turismo, mas gesto. Paga tudo. Tudo. Filhos, netos e até namorados recém-chegados, desses que ainda estão aprendendo os sobrenomes.
Leva todos. Não para ostentar, nem para controlar, mas para reunir.
O prazer dela não está no destino, mas sim na mesa cheia.
É o barulho.
É um café demorado.
É a fotografia imperfeita, com alguém piscando.
Ela faz isso até hoje.
Hoje, aos 90 anos de idade.
Noventa anos vividos com lucidez impressionante, humor afiado, uma memória generosa e uma disposição que desmente qualquer estatística.
Anda firme. Opina. Ri alto. Acolhe. Observa. Continua sendo aquela mulher que planeja, executa e cuida não mais de salas de aula, mas de uma família inteira.
Meu pai foi excelência silenciosa.
Minha mãe é presença ativa.
Ele construiu com rigor.
Ela mantém com afeto.
E juntos, mesmo separados pelo tempo, seguem sustentando a casa mais importante que existe: a casa invisível onde cabem todos os que se amam.
Schopenhauer dizia que o bom humor é a única qualidade divina do ser humano. Eu acrescentaria, olhando para minha mãe: a capacidade de transformar dor em amparo talvez seja outra.
Em última análise, somos isso: os que passam e os que ficam.
E, sobretudo, aqueles que ficam para cuidar.
E a deles, do gigante e da rainha, segue de pé.
Fabiano Pereira – Arquiteto e Urbanista
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