MONTESQUIEU, LIBERDADE POLÍTICA E O INQUÉRITO – Raimundo Mendes Alves

MONTESQUIEU, LIBERDADE POLÍTICA E O INQUÉRITO –
Uma Análise Crítica da Separação dos Poderes no Brasil
“Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as pendências dos particulares.”
— Montesquieu, O Espírito das Leis, Livro XI, Capítulo VI.
1. Introdução
A teoria da separação dos poderes, consagrada no Capítulo 4, Artigo 11, da obra O Espírito das Leis, de Montesquieu, permanece como um dos pilares fundamentais do Estado de Direito. Sua principal finalidade é evitar a concentração de poder e, com isso, assegurar a liberdade e a segurança dos cidadãos. Este artigo propõe uma análise crítica do referido texto de Montesquieu à luz do denominado “inquérito do fim do mundo”, instaurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e assim apelidado pelo ministro hoje já aposentado Marco Aurélio Mello, por representar, segundo ele, uma perigosa inversão de competências e de papéis institucionais.
2. Montesquieu e a Liberdade Política
No Capítulo 4 do Livro XI, Montesquieu define a liberdade política como a “tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem de sua segurança”. Para que essa tranquilidade seja real, é essencial que o cidadão não tema o arbítrio, seja do soberano, seja de outro cidadão. Com essas observações, o autor propõe, como salvaguarda dessa liberdade, a separação funcional dos poderes do Estado: o Legislativo, que cria as leis; o Executivo, que as aplica; e o Judiciário, que as interpreta e julga.
Ao advertir que “não há liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo”, Montesquieu denuncia o risco da tirania, alertando que o acúmulo de funções em um mesmo órgão ou indivíduo anula as garantias de imparcialidade e compromete a segurança jurídica.
3. O Inquérito do Fim do Mundo: Uma Inversão das Garantias Fundamentais?
Instaurado de ofício pelo Supremo Tribunal Federal em 2019, o Inquérito nº 4.781 buscou investigar a disseminação de notícias falsas, ameaças e ofensas contra membros da Corte. O que causou espanto e forte crítica da comunidade jurídica foi o fato de o STF reunir, no mesmo processo, as funções de vítima, investigador e julgador — uma aglutinação de competências que, para muitos, desrespeita o princípio do juiz natural, do devido processo legal e da separação dos poderes.
Marco Aurélio Mello, ministro já aposentado da Corte, quando ainda em exercício, apelidou-o de “inquérito do fim do mundo” justamente por enxergar nele um perigoso precedente de expansão e centralização do poder. A crítica se sustenta na ausência de provocação externa, na escolha unilateral do relator, na quebra do sistema acusatório e na supressão da atuação do Ministério Público como titular da ação penal pública.
Sob a ótica de Montesquieu, esse episódio levanta sérias preocupações. Se o mesmo órgão que se declara vítima também apura e julga os fatos, rompe-se a harmonia e independência entre os poderes, criando um desequilíbrio que ameaça diretamente a liberdade política dos cidadãos.
4. A Questão da Competência: Justiça Comum versus Justiça Constitucional
Outro ponto sensível diz respeito à competência. O inquérito chegou a atingir cidadãos comuns — jornalistas, empresários, comunicadores — cuja responsabilização, por regra, deveria se dar na justiça comum de primeira instância, conforme os princípios do foro por prerrogativa de função e do juiz natural. Contudo, essas investigações permaneceram centralizadas no STF, contrariando a regra geral de competência.
Ora, a concentração de poderes — especialmente de investigar, acusar e julgar — em um tribunal supremo, sem as balizas normativas e sem possibilidade de revisão por instâncias superiores, pode ser lida como uma forma sutil de absolutismo institucional. Exatamente o que Montesquieu buscou evitar ao propor a tripartição das funções do Estado.
5. Considerações Finais
Montesquieu nos alerta, com mais de dois séculos de antecedência, para o risco que a concentração de poder representa à liberdade dos cidadãos. Portanto, o “inquérito do fim do mundo”, ao reunir no STF as funções de vítima, investigador e julgador, rompe com o princípio da separação dos poderes e da imparcialidade judicial.
A segurança jurídica e a liberdade política repousam na certeza de que ninguém será submetido ao arbítrio e de que todos os atos estatais estarão sujeitos aos limites da legalidade e da competência jurisdicional. Sem isso, conforme adverte Montesquieu, a liberdade não passa de uma ilusão.
Referências
•MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Pedro Vieira Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
•BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 4.781/DF.
•MOURA, Thaméa Danelon. “Críticas ao Inquérito das Fake News e os Limites Constitucionais da Jurisdição Penal do STF”. Revista Jus Navigandi, 2021.
•MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020.
Raimundo Mendes Alves – Ex-policial, advogado criminalista e vereador
As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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