MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA: VARRER, LAVAR, ESVAZIAR… –
Hoje eu lavei a louça como quem lava a alma. Esfreguei pratos com raiva contida, copos com esperança, talheres com resignação. Cada espuma que escorria pelo ralo levava embora um pouco do que já não me servia: a mágoa do almoço de ontem, o silêncio do jantar de anteontem, a expectativa que grudou como gordura no fundo da panela. A água quente não queimava os dedos, mas derretia lembranças. O barulho da torneira era quase um mantra, repetido em silêncio, como se cada gota dissesse: “deixa ir”.
Lavar louça é um ritual subestimado. Não é só sobre limpar o que sujamos, mas sobre encarar o que ficou depois que tudo passou. É sobre olhar para os restos e decidir o que fazer com eles. E naquele instante, entre o detergente e o pano de prato, eu entendi que há dores que só se dissolvem com “sabão”.
Depois fui ao armário. Não para buscar roupa — mas para encarar fantasmas. Vestidos que já não me vestem, sapatos que não me levam mais a lugar nenhum, caixas com lembranças que só ocupam espaço e pesam. Cada peça guardava uma história, um cheiro, uma ausência. Desapegar é um verbo difícil, mas necessário. Joguei fora o que não me cabe, dobrei o que ainda me abraça, e deixei espaço para o novo — mesmo que ele ainda não tenha chegado.
Há algo de libertador em abrir portas e gavetas. É como abrir janelas na alma. O ar entra, a luz invade, e o que estava escondido se revela. Não é fácil. Tem coisa que a gente guarda achando que vai precisar, mas só ocupa o lugar do que poderia ser. Tem lembrança que parece bonita, mas machuca toda vez que a gente toca. E tem roupa que já não veste o corpo — nem o coração.
A vassoura, essa companheira silenciosa, não é só ferramenta de limpeza. É símbolo de coragem. De quem encara a poeira dos dias, de quem varre para fora o que o mundo insiste em empurrar para debaixo do tapete. Ela não reclama, não julga, não hesita. Vai lá e faz o que precisa ser feito. E eu, com ela nas mãos, me senti forte. Como quem diz: “aqui não, sujeira. Aqui não mais.”
Limpar é admitir. É reconhecer que há sujeira. É aceitar que há ciclos que se encerram, e que há beleza no chão limpo, mesmo que ninguém veja quem o limpou. É entender que o brilho não está só na superfície, mas no esforço de quem se dedicou a restaurar o que estava opaco. É sobre dignidade. Sobre não deixar que o acúmulo nos defina. Sobre não permitir que o pó nos torne invisíveis.
Esse manual não tem capa dura nem índice. Não está à venda em livrarias nem tem versão digital. Mas tem capítulos sobre lavar louça com dignidade, sobre arrumar armários com honestidade, sobre bater tapetes com fúria e amor. Tem páginas escritas com suor, lágrimas e sabão. Tem parágrafos que falam de noites insones, de manhãs em que o café foi o único abraço, de tardes em que o sol entrou pela janela e disse: “vai ficar tudo bem”.
Porque sobreviver, às vezes, é isso: esvaziar, limpar, deixar leve. É entender que o peso não está só nas caixas, mas nas culpas, nos medos, nas promessas não cumpridas. É aceitar que há dias em que tudo parece demais, e que nesses dias, varrer pode ser um ato de resistência. Lavar pode ser um gesto de fé. E esvaziar pode ser o primeiro passo para recomeçar.
Não há fórmula. Não há receita. Mas há esse manual — íntimo, silencioso, verdadeiro. Que me ensina, dia após dia, que a sobrevivência mora nos detalhes. No prato limpo. Na gaveta organizada. No chão varrido. Na alma leve.
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora dos livros As Esquinas da minha Existência e As Flávias que Habitam em Mim, crônicasflaviaarruda@gmail.com
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