DE DOR E ARTE –
Poderia parecer pedantismo. A impressão de ostentar erudição afetada e livresca, compartilhar conhecimento não originariamente nosso. Mas quem lê, anota, copia e, fatalmente, pensa no que leu. Alguém já afirmou que somos o único animal que não sabe viver e que possui o privilégio da manipulação dos seus sofrimentos e o dom de espalhar ao redor sua desventura. Infeliz e complexo, incapaz de entender sua própria finitude, o homem se vê na contingência de forjar filosofias, arquitetar religiões, evadir-se da realidade que o distancia do atalho através do qual deveria se encontrar a si próprio.
Infere-se, por exemplo, da leitura de Myra e Lopez (O Medo, O Amor, A Ira, O Dever: Os Quatro Gigantes da Alma) que o pensamento tem quatro gigantes: o medo, a morte, a loucura e a solidão. E no gigante do medo, a morte, a loucura, a solidão e a dor. E somos cósmicos, até ao tentar entendê-las. Até o homem chegar ao ponto de dominar a dor, de vencê-la em sua fragilidade química apenas, muitos medos se passaram e cá, ainda, estão.
Na dor dividida em muitas dores: do medo da morte, da tristeza, da perda, da rejeição; do abandono, da dependência, da dor de não ter nada, da inutilidade. Do sofrimento como punição divina; da purificação na busca do perdão; como castigo pelo pecado original; sem falar da oriental e assumida dor como purificação desejada e sem castigo.
Foi menos a retórica de Hipócrates que o olho clínico de Aristóteles quem primeiro a percebeu como o princípio da harmonia natural. O diabo é que ele se deixou envolver pela visão romântica de Platão que dizia ser ela a irmã do prazer; apenas uma emoção, pois gozo e penar nascem do mesmo lugar, o coração. O que não impediu Descartes de fincar o pé e acreditar no espírito dos nervos. Ao ponto de se convencer que a dor, seria apenas uma exacerbação do tato. Sábia foi a Academia laurentina, em plena Renascença, que incentivou os estudos de Leonardo da Vinci que viria a ser o lastro da anatomia e fisiologia modernas.
Essas coisas tendem a ser simples e sintomáticas. Marc Schwob no seu ensaio “A Dor” inicia o texto não pelo histórico formal do seu combate, mas com um passeio pelas galerias do Louvre. Ao se deparar com um quadro de Rosso sobre a imagem de um Cristo crucificado, teve a estranha sensação de que era de dor física a reação do Cristo ao ser retirado da cruz. Mas que não era dor física a refletida no rosto das mulheres que o amparavam. Estranho, um cientista enfatizar em primeiro lugar as representações artísticas do homem e não as certezas da ciência.
Camões fala da saudade, como a imensa dor das coisas que passaram; João Cabral olha a dor como a noite e a aspirina como o sol; Moacyr Scliar acreditava na Medicina como uma historia de vozes onde o silêncio é quebrado por gemidos de dor; Regine Dalcastagnè em estudo sobre o espaço da dor no romance brasileiro durante o período da última ditadura, fala dos escritores como os herdeiros do sofrimento de todos os torturados. E Hanna Arendt acredita na dor da solidão capaz de exterminar em nós o nosso eu.
Daí porque, a arte e a dor, companhia do homem desde sempre, em cada um de nós será sempre única, mas nunca unívoca.

José DelfinoMédico, poeta e músico

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