DE AUTO SUBVERSÃO –
Não tem por onde. Sou leitor compulsivo. E escrever, pra mim, será sempre de uma necessidade quase orgânica, absoluta, e um ato extremamente individualista. Quando o faço com circunspecção, às vezes, me sinto vulnerável. Começo a pensar no que dirá fulano ou beltrano. Me vem aquela sensação de estar perdendo tempo. Mais ainda, de estar fugindo de mim a radicalidade do que estou pensando ou sentindo. Daí a necessidade de escrever sem amarras. Sem arrependimento, mesmo, porque afinal palavras são permitidas. Afinal, estão todas no Aurélio e no Houaiss. Daí a certeza que se eu tomar as devidas providências em formar um trem (mental, digamos) muitas pessoas o tomarão andando.
É inescapável. O ser humano é assim. Os textos aparentemente arbitrários e livres parecem conter mais verdades que os que são cuidadosamente elaborados. Romances particularmente não muito bem acabados ou enxutos, por causa das suas estórias bem contadas são apaixonantes, vendem horrores, mas no fundo, não são bons romances. Sidney Sheldon, Paulo Coelho, por exemplo. Mas o povo gosta, as pessoas que os leem mundo afora adoram, eis o que interessa. O livro é como uma oportunidade. “O sol também se levanta” que após a primeira leitura repeti outra no ato, sempre que o releio (já estou na décima repetição ) a emoção chega galopando.
Tenho pra mim que os sentimentos que as pessoas alimentam em si mesmas (medo, alegria, tristeza) são mais visíveis nos lugares em que elas se refugiam. Nas igrejas, nos confessionários, nos consultórios psiquiátricos. Nos livros, também. Ao lê-los, o fascínio é uma razão suficiente para que a vida de novo tenha sentido. Às vezes os homens querem romper em busca de algo que desconhecem sem saber o quê. Sentem a necessidade de trocarem as fêmeas que dizem serem suas por outras, apesar delas já fazerem parte deles mesmos, que qualquer mudança seria uma amputação inconcebível.
Muitos encaram o seu trabalho algo insatisfatório, de modo que desprezá-lo após toda uma vida não significaria para eles mudança alguma. Foda querer fugir de uma coisa que muitas vezes não tem nada de racional. E a merda é que essas coisas são cavadas como uma pedra por uma gota eternamente idêntica. Essa desesperança, a busca dolorosa de algo que se mova, a coragem de reconhecer uma utopia e, por mais pobre que ela seja, abrir-se a ela, também complica . Como diz o texto bíblico “Amar a Deus” (essa força que rege toda a fenomenologia cósmica) sim. Mas “… sobre todas as coisas”? Talvez. No meu caso, primeiro tenderia a mim, afinal, fui feito “à imagem e semelhança de”.
Para a maioria, um anátema, paciência. Irônico, ser um livro que estou a ler, “Sapiens”, que me despertou toda essa baboseira verborréica (com acento agudo lusitano). Essa auto subversão de que lhes falo e estou a encher linguiça para tentar fazer vocês entenderem do modo que eu a sinto e percebo. O problema, mesmo, é que nem sempre vale a pena chutar o pau da barraca da censura. O importante seria incorporar nela a camuflagem e, sem dó nem piedade, fazer o que se deve fazer, e dizer, subtendendo ou não, tentar harmonizá-la como se harmoniza pão, água e vinho. Claro, assim saberíamos melhor contra o que lutar, quando fosse o caso. E fazer menos impossível falar sem que se usassem palavras erradas ou inexatas.
O diabo (com letra minúscula que é pra ele não se meter a besta) é que quase não existem muitas outras para substituição. Nunca seremos livres se não aceitarmos a construção e destruição da ideia e da forma, da mesma forma que nós aceitamos o sistema solar regulamentado que nos paralisa. Isso quem disse foi o memorável cineasta alemão cujo maior sonho era ser Marilyn Monroe (está dito na biografia autorizada dele “O amor é mais frio que a morte” ou “ A vida e o tempo de Rainer Werner Fassbinder”, escrita por Robert Katz).
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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