A TEMPORALIDADE E A SERVENTIA – Flávio Rezende

A TEMPORALIDADE E A SERVENTIA –

Em recuperação cirúrgica cumpro com mais disciplina a quarentena, não mudando no entanto a hora do despertar e o momento do café fumegar.

Entre o abrir das pálpebras e a degustação do desjejum, observo pensativo minha moderna escova dental, uma Oral B elétrica repousando no interior do copo que a alberga – na verdade duas escovas, uma mais antiga, e a moderna, ambas adquiridas em viagens com a família para os EUA.

No começo da nova aquisição, alterei uso das duas, como que por pena de abandonar de vez a mais velha, posto que canceriano, cultivo amor por seres, natureza, animais e até por objetos muito utilizados.

O uso da nova porém foi mostrando que a mesma escorregava menos quando molhada e com pasta, que possuía uma velocidade maior e precisava de menos carregamento para funcionar.

Lentamente fui dando mais ibope a nova, até que a velha sentindo tristeza por ser utilizada só em viagens e cada vez mais abandonada, começou sozinha a se ligar.

Quando voltei do hospital, após a cirurgia, Deinha revelou que ouviu um certo ruído de noite, achou estranho, pois parava e voltava, até de manhã perceber que era a escova ligando sozinha.

Eu já havia percebido que preenchia ela de energia, e quando ia usar, a mesma não funcionava.

Diante da nova poderosa, não escorregadia, ligeira e de design mais bonito, decidi aposentar de vez minha antiga Oral B, sem antes refletir sobre isso.

Pensei no Covid-19, ele chega pegando muito quem já tem mais tempo na carne, os que por problemas diversos estão mais devagar, com carcaça ultrapassada diante dos novos, precisando de mais energia para funcionar, e mesmo assim, gastando a mesma meio que sem necessidade, fazendo falta quando de fato se precisa.
Acontece naturalmente, inexoravelmente nosso design muda, a importância diminui, até que algo cuida de nos aposentar da vida.

Às vezes é uma gordura que circula e emperra, fruto das pizzas a mais, picanhas com cerveja, as vezes é a pressão que explode, decorrente do sal em excesso, tem ainda o açúcar, estresse, depressão, decisão pessoal, até as incontinências, como ocorreu com minha antiga escova, que incontinenti, na madrugada, dispensava a energia que daria a ela, a vitalidade necessária para seu existir.

Imaginei que diante da nova, em humilhante posição de ser usada de vez em quando, renunciara espontaneamente a ter carga, estava na verdade cheia de tudo, preferiu apagar, ficar como decoração, existir como memória.

E assim somos nós, as vezes somos substituídos no trabalho, na vida de outros, as vezes renunciamos por motivos vários as baterias que nos mantém úteis e vivos.

A diferença é que fazemos isso conscientemente, escolhas nossas, e/ou algo alheio a nossa vontade, faz por nós.

O Covid-19 veio obrigando muita gente a se retirar, não tem educação, não liga para permissão, tem predileção pelos mais frágeis, desligando da tomada a fonte de energia.

Vamos substituir nossos objetos, roupas e tomar nossas decisões embalados por motivos pessoais, sabendo que assim como agimos desta maneira, coisas além de nós, também chegam, e sem que saibamos os motivos, também nos desligam e nos tornam memórias, histórias, passagens.

Só nos resta aproveitar a carga da bateria vital que ainda temos, para deixar uma boa história, uma bela memória, escrever uma honrosa trajetória.

 

 

 

Flávio Rezende Jornalista
As opiniões emitidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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