A PIADA DE UMA PIROLOGIA PIRADA – Alfredo Bertini

A PIADA DE UMA PIROLOGIA PIRADA –

Que o Brasil é o país da piada pronta, isso dos humoristas aos cidadãos mais simples todos já perceberam. O lamentável desse contexto é tolerar que a inação frequente, válida para o comportamento de distintas instituições e variados agentes sociais, seja algo supostamente irreversível. Chega-se ao ponto da inoperância no prevenir e agir se posicionar entre o ridículo e o risível, diante de fatos tão graves e inadmissíveis.

O ponto que tomo aqui como referência dessa minha crônica é o fogo, um dos quatro elementos da natureza. Vale dizer que, em tempos de jogos olímpicos, não me refiro àquele que se enxerga no esplendor da pira, digno de todo um simbolismo desportivo absolutamente meritório. Longe disso.

Noutra perspectiva, reporto-me ao fogo de uma certa “piração”, que tomou conta dessa “loucura normal” que caracteriza o cotidiano brasileiro. Afinal, o fogo que foi ateado sobre a estátua do bandeirante Borba Gato, bem como, aquele do incêndio que abalou a cinemateca brasileira, mesmo que de configurações díspares, geraram situações merecedoras de uma espécie de “análise pirológica”.

Explico: farei esse esforço pela essência de uma razão que explique o sentido do fogo. Assim, penso que seja preciso validar um amplo conhecimento técnico, sem a efervescência desse momento de tantas “pirações políticas” e “romantismos impróprios” tão pontuais. Desse modo, busco dosar o equilíbrio para a compreensão dos fatos.

Por um lado, parece-me perceptível que o acirramento político tem levado a sérios questionamentos sobre velhas homenagens consignadas a logradouros públicos. Da simples placa que dá nome a uma praça até a estátua que possa nela estar erguida, tem-se estabelecido um tribunal extemporâneo, que julga sob os princípios e conceitos atuais o mérito daquela “homenagem” nominada. Na maioria das vezes, longe de qualquer debate que possa minimamente analisar o assunto e dele postular por uma solução, o que se tem proposto é a substituição pura e simples dos nomes. Algumas vezes, por indicações que trazem à cena uma linha de provocação e até mesmo um eventual confronto.

Quando se diz que o “uso da violência gera como reação ainda mais violência” é porque o ser humano não foi racional o suficiente para exercer o entendimento, no sentido mais amplo possível do termo. Infelizmente, apesar do avançar do tempo e de todas conquistas associadas ao fato, percebe-se hoje a aceitação de uma etapa de vida primitiva, incapaz de favorecer valores que respeitem as diferenças e façam uso do conhecimento adquirido. Enquanto não se vê limites para posturas extremas pautadas pela assunção de verdades próprias, entendimento e conhecimento têm sido negados, quando quaisquer exageros a favor deles cairiam muito bem. A inação daqueles que integram a parte da sociedade, que se exime do efeito nocivo do confronto entre extremos, carece de limites.

O episódio do incêndio doloso promovido na estátua de Borba Gato é o ápice de uma violência tão previsível quanto intolerante. É natural que o conhecimento histórico recente tenha propiciado, neste e em tantos casos semelhantes, outra face de uma verdade que precisa ser melhor traduzida para a sociedade. Certamente, a omissão de valores hoje rejeitados permite uma visão diferenciada do que tenha sido Borba Gato. Também vale dizer que sua referência temporal era outra bem diferente, algo que impõe o circunstancial como uma variável de análise importante. Um aspecto tal que causaria o mesmo tipo de dúvida em torno de “nominados” tão ou mais questionáveis quanto o bandeirante.

O que dizer de um mártir como Tiradentes, senhor de escravos? Ou mesmo, do Presidente Vargas, que na sua trajetória política abraçou a causa e exerceu um populismo autoritário? Claro, que também não caberá a qualquer crítico deles, arrancar ou tocar fogo em placas ou estátuas que lhes homenageiem. Por isso mesmo, insisto na tese que o assunto exige equilíbrio e maturidade, sem que se perca de vista um conhecimento amplo e um entendimento básico.

Do outro lado dessa minha análise, ainda sobre o elemento fogo, está o caso que envolveu mais um incêndio numa das instalações da Cinemateca. Ao fazer o mesmo esforço, por zerar o papel da politização desse outro duro fato e longe de querer apontar os riscos de sinistro pelo tipo de ambiente vulnerável e pela manutenção inadequada, cabe-me uma análise fria sobre a situação contextual da instituição.

A razão do fogo tem também suas revelações bem próprias, que só quem conhece a instituição de perto pode ser capaz de entender. Meu envolvimento direto com a instituição, deixa-me à vontade nessa árdua missão. Por isso, sinto-me tecnicamente seguro para dizer que os problemas institucionais da cinemateca vêm da sua própria origem, desde quando lá 1984, foi “assumida” pelo então Ministério da Educação e Cultura.

Na realidade, é que daquela destinação inicial, passando pela vinculação ao Ministério da Cultura (quando o MinC foi criado no Governo Sarney) até chegar à sua condição de mera penduricalha das estruturas da Secretaria do Audiovisual (em 2003, na órbita da SAv, a partir da gestão do Ministro Gil), nunca houve qualquer interesse efetivo e concreto por uma situação que lhe conferisse alguma mínima autonomia. Sobreviveu ao longo do tempo na informalidade e à reboque das instabilidades orçamentárias e de gestão do MinC e da SAv. Uma história de encontros e desencontros que cabem num texto específico, que terei a oportunidade de escrevê-lo, em breve.

Nos casos aqui relatados, o fogo impôs cinzas que se traduzem por incompreensões e preocupações bem distintas, cuja existência ou não do dolo compete à justiça avaliar. A hora agora é de se buscar o fênix que há nos casos, para que as razões técnicas de pensamento ou gestão não mais se imponham como falhas históricas.

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista e ex-secretário nacional do audiovisual e de infraestrutura do Ministério da Cultura

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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