Diogenes da Cunha Lima

Quando vim estudar aqui, meu pai, que tinha enorme curiosidade intelectual, advertiu-me:

 – Você gosta de literatura. Em Natal só tem um rio que é Câmara Cascudo. O resto é tudo riacho.

Banhei nas águas desse rio a minha adolescência e maturidade. Inicialmente, tentei, sem sucesso, aproximar-me dele. Mas mesmo sem prestar atenção ao meu entusiasmo, não deixava de ter uma palavra gentil. Um dia, fui fazer o exame oral, vestibular para a faculdade de Direito, na Ribeira. A banca de História nos assombrava. Lá estava ele presidindo a mesa, com Hélio Galvão e Floriano Cavalcanti. Quis, de todo jeito, chamar a sua atenção. Hélio, o religioso, perguntou-me o significado da Revolução Espanhola. Dessacralizei a Igreja Católica como podia. Desde Francisco Franco até o Santo Ofício. Arrematei, dizendo que a Revolução Espanhola representou a falência da democracia e a matança industrializada que incluiu o maior poeta do universo, Garcia Lorca. Cascudo riu e comentou o meu atrevimento com o austero professor Floriano Cavalcanti, chamando-o pelo apelido carinhoso “Flor”.

Antes de ser meu professor de Direito Internacional Público, já assistia às suas aulas, em outras classes. Quase nada de Direito, muito de etnografia, cultura popular, história, anedotas acompanhadas de gestos e caretas, poesia. Um dia, disse que Goethe era a chave. Apenas isso: a chave. Ainda agora lendo sobre o Caos, a mais nova teoria científica em voga, descubro que até na teoria das cores Goethe é a chave.

Cascudo me deu honras de aluno predileto. Um filho, dizia. Foi meu padrinho de casamento em João Pessoa. Creio que fui selecionado pela ousadia em lhe sugerir estudos e pelo bairrismo de Nova Cruz e Passa e Fica. O tempo só me faz aumentar a devoção ao Mestre. Em minha sala de trabalhos, os seus olhos imobilizados no retrato me fazem ver coisas, caminhos, soluções imprevistas.

Frequentei a sua casa por mais de vinte anos. Tive curso informal de literatura e humanismo. Sou testemunha do amor, da dedicação à esposa com nome de flor, do bem-querer aos filhos, da alegria pela beleza de Daliana; pelo talento da escritora precoce, Camila; e por Niltinho, que deu um bom depoimento sobre o avô.

Certa vez, o Mestre me disse que ao chegar em casa umas flores amarelas (que estavam do outro lada da porta de entrada) lhe cumprimentavam. A flor lhe dava bom dia. E Dáhlia, que lhe calçava as meias, adivinhava suas vontades!

Quando lhe mostrei o livro, sugerido por Paulo Macedo, Câmara Cascudo, um Brasileiro feliz, reprovou-me: “Você está chamando os outros cem milhões de brasileiros de infelizes! ”. Depois de publicado, para a minha alegria, comentou que era a forma boa de fazer biografia: não definir e mostrar as várias faces e circunstancias para que o leitor conclua quem é o seu biografado. E adotou o título, declarando ser realmente um brasileiro feliz.

Na entrado do seu quarto, havia um retrato de Rubem Ludwig, comigo presente. Gostou muito do ex-ministro, chamando-o de xará, Ludwig, Ludovicus. Dona Dáhlia me contou que, antes de deitar, o Mestre atirava beijos ao retrato e nos dava a benção.

Sei que meu padrinho, de onde estiver, com asas, vestido de seda e arminho, abençoa a minha vida e a dos meus.

Diogenes da Cunha Lima – Escritor, poeta e presidente da Academia de Letras do RN

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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