ZILA MAMEDE, A POETA DO MAR –

Há quase um mês, no dia 07/11/2017, o acadêmico e presidente da ALRN, advogado, poeta e escritor Diógenes da Cunha Lima, publicou artigo no Blog Ponto de Vista, do jornalista Nelson Freire, rememorando e homenageando a insigne Zila Mamede, a quem catalogou como uma das mais importantes poetas do Brasil. Logo no início do seu texto, o articulista assim se expressou: “A sua perfeição poética, de forma e invenção, não é menor do que a de Cecília Meireles, Adélia Prado ou Hilda Hilst. Os seus poemas foram elaborados com engenho e arte. Contudo, não ganhou fama nacional, ainda que reconhecida e altamente admirada por nossos grandes poetas.” E, no final do artigo, o acadêmico arrematou: “A obra da Poeta do Mar não é transmitida e nem estudada nas escolas, não ganhou a merecida dimensão nacional. Mas, não pode ser esquecida neste Rio Grande, estado em que desejava ter nascido e ao qual legou o melhor da sua organização literária e a sua criatividade poética.” Pode, sim, haver certa ausência de maior divulgação da profícua obra da Zila Mamede. Isso, no âmbito nacional, pois em terras potiguares ela tem sido lembrada, se dando seu nome à Biblioteca Central da UFRN. A Biblioteca Central Zila Mamede possui hoje uma sala com objetos, livros e cartas da poetisa, localizada no Setor de Coleções Especiais. E seu nome também foi dado a escolas estaduais.

Expressão máxima da poesia potiguar do século XX, foi lida e admirada por grandes poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e João Cabral de Melo Neto. Nasceu no ano de 1928, em Nova Palmeira, localidade fundada por seu avô e por seu padrinho de batismo, e que depois passou a ser município do Estado da Paraíba. Apesar de seu pai ser de Caicó, e seu avô materno de Jardim do Seridó, cidades do interior do Rio Grande do Norte, as duas famílias se juntaram no estado vizinho, onde Zila viria a nascer. Ainda criança, mudou-se para o interior potiguar, mais precisamente a cidade de Currais Novos, onde seu pai se estabeleceu com uma usina beneficiadora de algodão. Durante os primeiros anos da Segunda Guerra, Zila foi morar em Natal, onde seu pai se achava desde a chegada dos americanos, para construção da base aérea de Parnamirim. E foi após concluir os estudos secundários, que ela começou a se interessar por literatura. Para o quê muito contribuiu seu padrinho, o culto Francisco de Medeiros Dantas, com quem ela conviveu quando passou algum tempo entre as capitais João Pessoa e Recife.

Zila começou a escrever aos 21 anos, ao retornar a Natal, após uma tentativa frustrada de ser freira. Entre 1955 e 1956, cursou biblioteconomia no Rio de Janeiro, e se especializou nos Estados Unidos. Depois disso voltou para Natal, onde reestruturou as duas maiores bibliotecas da cidade: a Biblioteca Central da UFRN, que hoje tem seu nome, e a Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo. Publicou livros sobre o assunto, foi componente do Conselho Federal de Biblioteconomia, trabalhou no Instituto Nacional do Livro, em Brasília, e seu nome tornou-se referência na matéria. Zila escrevia com sutileza sobre suas paixões, mas abordava ainda temas relacionados ao sertão nordestino. E era claro seu fascínio pelo mar, que ela havia conhecido em 1939, numa viagem a Recife. Seus livros publicados são: “Rosa de Pedra” (1953), “Salinas” (1958), “O Arado” (1959), “Exercício da Palavra” (1975), e “Corpo a Corpo” (1978). No ano de 1978 foi também lançado o livro “Navegos”, que reúne as cinco obras anteriores. O poeta Manuel Bandeira considerou seu primeiro lançamento, “Rosa de Pedra”, um dos melhores livros de versos brasileiros. Por “Salinas”, Zila recebeu o prêmio “Vânia Souto Carvalho”, em Recife. Já “O Arado” teve prefácio de Luís da Câmara Cascudo. A poetisa também se dedicou à pesquisa sobre as obras de João Cabral de Melo Neto e Câmara Cascudo.

A poesia de Zila Mamede ganhou contornos oníricos e audiovisuais no curta-metragem “Pegadas de Zila”, produzido em 2011. Com roteiro e direção do potiguar radicado no Rio de Janeiro, Valério Fonseca, e trilha sonora do cantor e compositor Dudé Viana, o filme tece colcha poética de retalhos, tendo como protagonista a atriz Rosamaria Murtinho, na pele de uma mulher que revive a poesia existencialista e passeia pelas memórias da poetisa, que sonhava conhecer o mar. O curta tem pouco mais que 11 minutos de duração, foi rodado em Natal e no Rio de Janeiro. Participou de vários festivais e ganhou alguns prêmios.

Zila Mamede morreu afogada em 1985, enquanto nadava na Praia do Meio, situada na costa litorânea, próxima ao Forte dos Reis Magos, em Natal, como fazia quase diariamente. Sobre tal episódio funesto, assim se expressou o acadêmico Diógenes da Cunha Lima, no artigo que mencionei no início desta crônica:

“Devota de Santa Luzia, no dia a ela consagrado, em um 13 de dezembro, saiu da sua residência, no edifício coincidentemente chamado “Caminho do Mar”, para ir à praia do Forte. Não se sabe como, mas seu corpo navegou por sobre os arrecifes, atravessou o Potengi e aportou na praia da Redinha. O mar que fora o seu mais sensível tema, foi para ela arrebatamento, fascinação, fantasia, êxtase. O corpo intacto, identificado por amigos, entre os quais a escritora Eulália Duarte Barros, estava coberto de sargaço.”

Nos três poemas que transcrevo a seguir (o último deles, um magnífico soneto), se nota bem o marcante fascínio da poetisa pelo mar. E alguns versos sabem mesmo até como certo prenúncio do seu trágico fim. Poderia ter sido uma tragédia anunciada?

Do livro SALINAS (1958)

ELEGIA (duas estrofes)

Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.
Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.

Meus antigos horizontes,
Navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
que só existo no mar.

CANÇÃO DO AFOGADO

Nos olhos de cera
dois pingos de vida,
nas marcas da vida
a noite pisou.
A face tranquila
bordada de sombras
– são restos de estrelas
que o ceu apagou.
Os dedos lilases
não pedem mais sol;
e os lábios desfeitos
perderam seus gestos,
calaram seus sonhos
que a morte levou.
Cabelos de musgos
lavados de espumas
caminha o afogado
que o mar conquistou.

PARTIDA

Quero abraçar, na fuga, o pensamento
da brisa, das areias, dos sargaços;
quero partir levando nos meus braços
a paisagem que bebo no momento.

Quero que os céus me levem; meu intento
é ganhar novas rotas; mas os traços
do virgem mar molhando-me de abraços
serão brancas tristezas, meu tormento.

Legando-te meus mares e rochedos,
serei tranqüila. Rumarei sem medos
de arrancar dessas praias meu carinho.

Amando-as me verás nas puras vagas.
Eu te verei nos ventos de outras plagas:
juntos – o mar em nós será caminho.

 

 

Eugenio Bezerra Cavalcanti Filho – Empresário aposentado / Escritor

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

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