PROVOU DO MUNDO AO FOLHEAR UM LIVRO –

O relato que segue me foi passado como verdadeiro. Como não dou fiança ao conto dos outros, omito os nomes envolvidos e digo apenas: “leitor, dê a fé que desejar”.
Ele, dizem, era um conhecido bacharel. Estudioso e de hábitos austeros, tinha amealhado excelente reputação (assim como uma pequena fortuna). “Romântico em demasia, achava que toda a Justiça estava nos livros”, diziam as mais ligeiras línguas. “Um cavalheiro do Direito que, à semelhança do Pierre Menard de Borges, com sua vida, queria escrever um outro Quixote”, respondiam os amigos.
Pela época, estava noivo. De triste figura e após anos de celibato, tinha encontrado sua Dulcinéia. Mais nova, ela era advogada, festejadamente bela, de raciocínio fino e ligeiro.
Dizem que, em data comemorativa, resolveu presentear a amada. À sua maneira (de intelectual à moda antiga), foi visitar os sebos ao derredor da nossa Cidade Alta. “Quem sabe não encontro algo interessante”, teria dito a si mesmo. Parava aqui e acolá, sem se importar com a multidão em tempos de volta às aulas.
Foi em um desses comércios de livros usados (nome pomposo que dava para os sebos), nem tão bom nem tão ruim, que deparou com dois achados. Primeiramente, uma coleção, muito bem conservada, das obras de direito civil de Clóvis Beviláqua, o “pai” do Código Civil que vigorou entre nós por quase um século.
Interessou-se, de imediato, pela coleção, sobretudo pelo tomo pertinente ao direito de família. Um bom presente, até porque sua noiva militava precisamente nessa área do Direito. Por outro lado, para seu desgosto (sempre disfarçado), ligeiramente desconfiava de “certos avanços” na concepção de família de sua amada. Mansamente, folheou o livro. Muito embora não chegasse a advogar um Direito dos tempos das Ordenações Filipinas, inconscientemente procurava alguma lição mais austera na obra a ser presenteada.
Mas o fato é que o livro levou-o a um segundo e inusitado achado. Dentro dele, folhas soltas, marcadas por letra belíssima, narravam o desenlace de um malogrado casamento moderno. Ali, a anterior proprietária do livro descreveu seus heterodoxos conselhos a uma cliente, para que, mesmo tendo abandonando o seu marido, obtivesse, de pronto, a assinatura que poria um final feliz (para ela) ao relacionamento.
E preparando sua cliente para as tratativas com o amado (ou melhor, ex-amado), a advogada não levava em consideração qualquer das lições de Beviláqua, jurídicas ou morais. Em casos como o da sua cliente, registrou a advogada, “pouco importava o Direito ou as regras de moral. Importava, sim, que não aflorassem mal entendidos antes de divididos os haveres e pactuadas as obrigações” (quanto às cifras, para não cansar o leitor, apenas menciono que superavam algumas centenas de milhares).
Recomendava à cliente, primeiramente, não deixar, em hipótese alguma, que o  bem-querer do ex-esposo por ela se perdesse antes de terem os papéis sido assinados. Se desconfianças surgissem por parte dele, seria de bom tom, para despistar o inconfessável, reconhecer que agiu mal aqui e ali. Mas recomendava, para tanto, sempre dizer algo genérico como: “A partir de certo momento, tudo me foi muito difícil e, por gostar muito de você (e isso era muito importante dizer, mesmo não sendo bem esse o caso) e ser como sou, não consegui lidar corretamente com a situação”.
E mesmo para o caso de haver algum titubeio (por parte do marido, claro), até mesmo no dia da assinatura, aconselhava sua cliente a agir com toda calma. Deveria deixar claro que entre o casal restou certo dissabor (até porque, se assim não fosse, o romance não haveria acabado). Mas deveria dizer que “estava tomando a decisão menos por ela e mais por ele, porque não valeria mais a pena cansar-se ou viver com desassossegos”. E que, mesmo de longe, “iria continuar a segurar a mão dele (figurativamente, claro), esperava achar a própria felicidade e, sobretudo, iria continuar torcendo por ele”.
Por fim, em caso de maior relutância, um tiro certeiro. “Deixe algo em aberto”, recomendou; “esperanças operam milagres”, completou. Fale algo como “passar na casa dele, após as assinaturas (que isso fique claro), para devolver alguns pertences, roupas ou livros”. Qualquer coisa valerá, desde que ligeiramente lembre os momentos que passaram juntos. Insinue que “ele é um homem maravilhoso e que um sentimento de bem-querer sempre sobreviverá às adversidades da vida, até mesmo à dolorosa (para ele, apenas), mas inevitável separação”. Mesmo porque esse tiro poderá vir a servir a outros propósitos. “Malogradas outras expectativas, nunca se sabe o dia de amanhã”, cavilosamente lembrou.
“Conselhos seguidos, sucesso obtido”, registrou por fim a diligente advogada, sem mencionar os nomes dos envolvidos. Mais um segredo de(a) Justiça?
Dizem que o nosso cavalheiro de triste figura reconheceu letra e estilo. Saiu em disparada. Os que estavam por perto, afirmam tê-lo ouvido gritar, meio fora de si, que “uma boa advogada não é necessariamente uma boa esposa”.
Ironicamente mais triste é que, diferentemente do Quixote – que “lia o mundo para comprovar os livros”, na bela expressão de Foucault – ele finalmente provou do mundo tão somente ao folhear um livro.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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