O VAQUEIRO CHICÃO –

Nas minhas memórias há duas figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu, parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite, mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assú. Era o contrário do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que dizia não gostar, mas tomava todos.

Ambos usavam a vestimenta de vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma cor entre marrom claro e vermelho escuro.  O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte, que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato, tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.

Eu fui mais amigo do Chicão, pois tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho. Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os conhecesse.

A vida de Chicão era mais negociar que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra, Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia. Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.

Diziam que, certa vez, um cigano tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída, voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.

 

Tribuna do Norte. Natal, 24 out. 2019

 

 

 

Tomislav R. Femenick – Mestre em economia com extensão em sociologia. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *