O ÓDIO ATRAPALHA… –
Ferreira se descreve como uma pessoa comum; um filho de Deus, temente a Ele. Somente. Aposentou-se como bancário até cedo da vida. Ficou meio sem ter o que fazer e assim continuou até os dias atuais. Gestor da casa (no que não conflitar com os misteres – e mistérios – da esposa Lourdes), conservador de amizades, polidor das virtudes do “bonus pater familiae”.
Passou a ocupar dias e horas vigiando os seus direitos de consumidor. Conferência rigorosa nas contas de água, luz e telefone. Marcação cerrada no preço do transporte público usado pela empregada. Números, vírgulas e zeros para medir se o IPTU foi lançado corretamente, de acordo com a metragem da casa. Se alguma coisa desse errado, já sabia o que fazer: levar o infrator à Justiça! Aprendeu em reclame de televisão que não precisa de advogado para questionar algum desdouro aos seus direitos consumeristas. Iria ele mesmo, sem precisar de intermediário. De pouco valeu o lembrete da filha de que em casos tais, poderia valer-se da Defensoria Pública ou da assistência judiciária prestada pelos estagiários do Curso de Direito das diversas faculdades da cidade.
Comprou uma geladeira, pagando rigorosamente as prestações. No terceiro mês o motor da bichinha pifou. Era chegada a hora de pôr em prática a sua alma de guerrilheiro do consumo.
Foi a um juizado especial, onde apresentou as suas mágoas, que foram tomadas por termo, no auge do seu ódio contra a fábrica e contra a loja que vendera o produto defeituoso. Queria ver os dois entrando em cana. Pediu para o juiz fixar uma indenização pelos danos morais que havia sofrido. Ora! É muito atrevimento vender a um homem de bem um produto do mal. Esclarecendo, em mau estado.
Marcada audiência, compareceu aos pés do homem de preto e discutiu bravamente com os representantes das rés. Ao final do ato o juiz proferiu a sentença: trezentos reais de indenização por danos morais para o consumidor lesado. “Só isso, Seu juiz?”, advindo a resposta positiva, pois no alvoroço da sua raiva foi somente o que requereu ao magistrado. Esqueceu-se de solicitar que as empresas lhe dessem uma nova geladeira.
Saiu do fórum com a indenização mixuruca no bolso e com duas lições: não se deve tentar resolver problemas dessa natureza no calor da cólera; deveria ter escutado a orientação da filha e procurado uma assessoria jurídica, mesmo gratuita.

IVAN LIRA DE CARVALHO – Juiz Federal e Professor

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