O DIREITO NA LINGUAGEM DO CINEMA III –

Na semana passada, defendi aqui o estudo do direito através da linguagem do cinema, especialmente através daquelas obras que podemos classificar como “filmes jurídicos” (“legal films”, em inglês). Hoje, como prometido, vou dar algumas das razões que fundamentam esse meu ponto de vista (à semelhança, aliás, do que já fiz em relação ao estudo do direito através da literatura).

Nesse sentido, em primeiro lugar, posso dizer que os “legal films” testemunham a visão sobre o mundo do direito existente em determinada sociedade em certa época, muito embora essa visão esteja marcada, em certa medida, pela ótica particular do roteirista ou do diretor do filme em questão. E esse testemunho, embora às vezes impreciso, é bem mais acessível ao espectador (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, que os áridos estudos jurídico-sociológicos postos em livros de caráter estritamente científico. Ademais, parece certo que o cidadão médio tem muito mais contato com operadores jurídicos ficcionais – incluindo-se aqui os personagens literários, de filmes e, no Brasil, sobretudo, os de telenovelas – do que com profissionais reais. Consequentemente, a imagem que o cidadão médio faz da lei, do direito, da justiça, dos juízes, dos promotores, dos advogados etc. é formada muito mais através da ficção (em suas diversas formas, incluindo o cinema e a televisão) do que a partir de experiências diretas pessoais.​

Em segundo lugar, alguns “legal films”, sobretudo aqueles que já se tornaram clássicos, apresentam e resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados. Os grandes filmes, com suas belas estórias, relatando a casuística das prisões, da vida forense ou dos escritórios de advocacia em linguagem bem mais elegante e acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes aulas de direito. O relato cinematográfico, com sua dramaticidade, muitas vezes é bem mais elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição. Através de um filme como “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, 1957), certamente se compreenderá muito mais facilmente a dinâmica de um júri do que pela leitura de um enfadonho tratado de processo penal.

Em terceiro lugar, vale a pena estudar o direito através do cinema porque, na medida em que haja uma correspondência entre o conteúdo do filme e a realidade do mundo jurídico (o que nem sempre se dá, uma vez que estamos falando sobretudo de obras de ficção), o estudo do direito, partindo da casuística narrada no filme analisado, torna-se bem mais concreto e compreensível.

Em quarto lugar, pode-se dizer que, valendo-se de uma análise do cinema de outros países (EUA, Inglaterra, França e Itália sendo referenciais mais relevantes, a meu ver), é possível se conhecer melhor – e comparar – a imagem que a sociedade brasileira tem da atividade jurídica e dos profissionais do direito no nosso país. Tomemos o exemplo dos EUA, a partir dos advogados protagonistas de “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, 1959) e de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, 1962). Em ambos os casos, temos protótipos de advogados defensores de um idealismo moral e ético, que lutam contra o sistema vigente, tão comuns no imaginário norte-americano. Entretanto, como já disse aqui certa vez, esse não é o caso do Brasil, onde a profissão de advogado (e, em certa medida, as demais profissões relacionadas ao direito) possui, tanto no cinema como na ficção em geral (romances, teatro, televisão etc.), conceito bem pouco lisonjeiro. Mal visto, o advogado (representativo aqui do conjunto das profissões jurídicas) é tido como um bacharel não vocacionado, preguiçoso, despreparado, incompetente e até mesmo desonesto. Em regra, o direito ou a justiça pouco importam para ele; o interesse legítimo do cliente também não. O que vale é o benefício, sobretudo financeiro, que suas peripécias “jurídicas” vão lhe dar.

Em quinto lugar, acho que vale a pena estudar o direito através da sétima arte porque a (re)construção cinematográfica (ou mesmo televisiva) dos operadores jurídicos pode ser um importante instrumento para que os estudantes e os profissionais do direito no mundo real repensem – por consequência, reconstruam com aprimoramento – os seus papéis e as suas imagens na sociedade. Volto aqui ao caso de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, no original). Romance de 1960, da escritora norte-americana Harper Lee (1926-), vencedor do prêmio Pulitzer (de 1961), ele foi adaptado para o cinema, com o mesmo título, em 1962. O enredo do livro/filme, no que toca às suas personagens “jurídicas”, foca essencialmente no advogado generoso e idealista Atticus Finch (interpretado no filme de 1962 por Gregory Peck, que por esse papel ganhou o Oscar de melhor ator em 1963). Essa personagem fictícia é provavelmente o advogado mais famoso da história da literatura e do cinema. E é também, sobretudo a partir da telona, aquele que mais contribuiu para melhorar a imagem dessa profissão, não raramente mal vista.

Em sexto lugar, o cinema – e, talvez em maior grau, a televisão –, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces do cinema e da televisão – por exemplo, com a religião, com os costumes, com a moda e por aí vai –, eles (cinema e televisão) são subversivos, tanto para o direito positivo em si como para a “mentalidade” jurídica de modo mais abrangente. Não causa assim espanto que esse cinema mais “subversivo” (ou essa telenovela, no caso do Brasil) tenha antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão na ficção – seja através de romances, do teatro, do cinema etc. –, esse meio de expressão que William P. MacNeil certa vez chamou, poeticamente, de “lex populi” (em “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture” (Stanford University Press, 2007).

Bom, e o tal livro “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), de Julio Cabrera, que prometi comentar? Isso, por falta de espaço hoje, ficará para a próxima semana.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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