NOITE ADENTRO –

Depois de cessados o prazer e a tormenta das coisas distantes ou extintas, como objetos e utensílios que povoaram um dia os recantos da nossa casa; ou os entes queridos vivos ou mortos que aconteceram em nossas vidas; é normal a lembrança deles. O improvável (ou até impossível ) desejo de tornar a vê-los ou possuí-los, também.

Mas os sonhos que completam o nosso sono são egoístas, surreais e incontroláveis. Perfeitamente justificável. É que o nosso subconsciente tem um quê de poesia e loucura. Ele fala sempre numa linguagem diferente, incompreensível, torta e, pior ainda, metafórica. E apaga em nós a lembrança deles, na maioria das vezes. Eis que se acorda com a sensação de algo bom ou ruim acontecido, mas sem se saber ao certo muito bem o que se sonhou. Uns vislumbram neles a luz, outros, a sombra. Só que os que vêem sombras constroem muros para se protegerem e, óbvio, dar mais trabalho aos psicanalistas.

Não sei com vocês, mas comigo funciona assim: se o sonho é bom procuro dormir logo em seguida e ele continua. Se for um pesadelo, dou um tempo, vou até a geladeira e bebo ou como algo. De volta durmo pesado, e como um filme, ele vai à cucuia, malogra-se, vai pro beleléu. A meio da noite acordei com o coração a mil, sabendo o porquê. Eu me afogava quando algo me moveu para a margem do rio, mas era a margem errada. Errada? Sim, no sonho era assim. Fazer o quê? Levantei-me a custo, o corpo dolorido da posição forçada e estranha em que eu pegara no sono lendo um livro. Ao lado a cama estava vazia. Tateando a escuridão, segui o corredor que conduz à sal. O que vi remeteu-me a quietude.

Ela estava junto da janela que dá pra rua. Iluminada pela luz fosca e ligeiramente nublada dos postes (chovia) e que a banhava num tom quase sobrenatural e azulado tingindo também a minha camisa branca que ela usava pra dormir e lhe deixava à vista a base das nádegas. Estava imóvel, um cigarro na mão direita ardendo devagar. E olhava a noite com ar resignado. Teria também sonhado? Não deu pela minha presença e assim deixei-me a ficar a olhá-la encostado à parede meio ensonado e algo assombrado com a imagem de uma mulher (me pareceu) ausente do mundo e de si mesma, olhando um ponto indefinido na noite escura como se ansiasse por coisas passadas, por algo que já tinha acontecido há muito tempo, e porque o são as coisas do mundo, nunca mais se repetiria. Depois ergueu o braço cuja mão segurava o cigarro (o gesto tirou-me repentinamente do transe) e levou-o à boca, inalou e expeliu o fumo. Que a envolveu em tons de azul e eu recuei, devagarinho, ao quarto. Alguma coisa me disse que não era sensato, interferir naquele momento.

Voltei sorrateiro, pé ante pé, pra cama. Fingi dormir quando senti que ela estava de volta. Levantei naquela manhã ensolarada interrogando-me sobre a suposta melancólica disposição que lhe vira nesta noite que, até então, eu desconhecia. Talvez ela fingisse dormir também. Foi quando pensei que, nascendo, vivendo ou morrendo, sempre estamos sós no mundo. Povoado por este imenso depósito de gente esquecida que nunca mais tornará a ser trazida à luz da existência real. Jung dizia que felicidade é sonhar com a curva do sol. E eu que ela é, entre outras coisa , ter algo que se pode perder. Deixa pra lá , a imaginação só complica as coisas. E foi sem mais nem menos, sem beijá-la, sem me despedir (ela ainda dormia) que deletei a noite de neblina e sombra. Encarei o sol já alto e calorento. E me perdi entre os semáforos da selva amazônica de Natal.

 

José Delfino – Medico, poeta e músico
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