NO MUNDO DA LITERATURA POLICIAL –
Logo cedo na vida abandonei a literatura em quadrinhos (papai só deixava eu ler “O Sesinho”, presente mensal e gratuito do SESI, lembram dele?). Mas eu me amarrava mesmo era no “Gibi mensal”. Daí, então, começou a enxurrada de revistas: “Dom Chicote”, “O Zorro”,“ O fantasma”, “Tom Mix”, “Gene Autry”, “Roy Rogers”, “Hopalong Cassidy”, Flash Gordon, e por aí ia, eu lendo sempre escondido dentro do quarto. Em seguida chegou a vez dos “ FBI”, “O Coyote”,”Brigitte Montfort”  a espiã nua que abalou Paris). Foi quando um vizinho da minha mesma idade, em Fortaleza, hoje engenheiro aposentado da NASA, que tinha um pai médico e maníaco por ficção policial e que tinha uma coleção imensa de histórias de detetive, me levou para vê-la ao vivo. Fiquei abestalhado com tanto livro. Ele puxou um deles de uma das estantes (“Apenas um dedo que se movia”, versão “paperback” em português de Portugal do original “The movie finger”, de Agatha Christie, 1943) e me deu dizendo: Leia este, é ótimo, não marque dobrando página senão ele vai notar, cuidado pra não rasgar, e me dê de volta. Cumpri o prometido e a partir de então foi um livro atrás do outro. Perdi a conta. Nunca mais parei.
 
Eis aí o início ao acaso da união estável e apaixonada que me transformou para sempre num leitor contumaz de romances/histórias policiais. De uma maneira tal que fiz questão, já adulto, de ir ver em Londres (quando lá morava) a casa de Sherlock Holmes na Baker Street e ao Rio de Janeiro tentar localizar a do detetive Espinoza no bairro Peixoto. Quase conseguimos. A julgar pela descrição dela e pelos detalhes das coisas e dos arredores que a limitam, a casa do Espinoza existe, apenas os números não coincidem. Inconformados  eu e Magnus (o Predador) fomos em desforra até o “Árabe” na galeria Menescal provar as iguarias preferidas dele. Homem de bom paladar esse detetive que ama livros e os empilha no chão do quarto formando “auto estantes”. O quibe com cebola crua e a esfirra são ótimos, recomendo. Depois fomos até a DP onde ele trabalha. O local foi fácil de identificar, claro. Coisa de doido, não, ou melhor, tem doido pra tudo. Quantos outros não fariam (ou fazem) o mesmo? Por muito menos, existem os que vão ver as casas onde moraram Pablo Neruda, Shaskespeare, até o túmulo de Evita Peron. Por que não se ir atrás também do irreal e alimentar quimeras e fantasias?
 
Num ambiente matemático de fria imparcialidade, as estatísticas revelam que é um fenômeno universal o fato que os romances policiais ou de mistério são os mais procurados dentre a diversidade de ramos literários. Daí a popularidade e consagração dos irreais Dupin, Lecoq, Holmes e seu auxiliar Watson, Dr. Thorndyke, Poirot, Nero Wolfe, Ellery Queen, Mr. Reeder, Perry Mason, Sam Spade, Maigret, Shell Scott, Marlowe, Miss Marple (a primeira a quem fui apresentado). Uns, detetives profissionais, outros amadores, inspetores de polícia, rabinos, sacerdotes, velhas solteironas. Tem de tudo, desde o detetive obeso e comilão que resolve tudo se empanturrando sempre, sem sair da cadeira de balanço, até mais recentemente o dono de sebo, o detetive Cliff Janeway que deixou a polícia e entrou para o ramo de livros raros com a ideia de levar uma vida pacata. Até quando apareceu na loja uma velhinha com um volume de capa roxa e letras vermelhas pedindo que recuperasse o restante de uma valiosa coleção de Richard Burton que havia pertencido ao avô dela, amigo íntimo do explorador inglês. Começa daí o estonteante enredo.
 
Em um outro, acontece alguém a andar espalhando cadáveres por causa de uma edição raríssima de “ O Corvo” de Poe. Janeway de volta ao mundo do crime, dá outro show. Entremeia nos livros comentários sobre Mark Twain, Stephen King, Faulkner dentre outros. Uma delícia! Já são três romances e eu ansiosamente esperando pelo quarto. O autor, John Dunning, é, na vida real, um especialista em livros raros e possui uma livraria virtual chamada “Old Algonquin Books”. Isto sem falar nos latinos Rubem Fonseca e Jorge Luis Borges que, também, entraram na onda. Como também o último personagem que tomei conhecimento, Berenice, uma motorista carioca que circula pelo bairro de Copacabana. No Brasil, a história começou bem antes quando Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Correia escreveram para o jornal “A Folha” em forma de folhetim, o romance “ O Mistério”, em quarenta e sete capítulos , e a aceitação foi tal, que em 1928, já em livro, a história já atingia a sua terceira edição.
 
Desta linhagem de escritores brasileiros que se dedicaram ao gênero policial destacam-se dentre outros Ronnie Welss, pseudônimo de Jerônimo Monteiro, que criou o detetive Dick Peter; Aníbal Costa cujo personagem já abrasileirado, chamava-se Roberto Ricardo; Luis Lopes Coelho que criou o delegado Dr. Leite nos livros “A morte no envelope” (1957), “ O homem que matava quadros” (1961), e “ A idéia de matar Belina” (1968) e foi um dos que consolidaram a narrativa policial nacional com personalidade e estilo próprios. Seguidos mais recentemente por Rubens Lucchetti autor de “O crime da gaiola dourada, por Tony Belloto , escritor e guitarista da banda “Titãs”, criador do detetive Bellini e Luis Alfredo Garcia-Roza, psiquiatra, pai do detetive Espinoza e da motorista Berenice, já referidos anteriormente. Fernando Pessoa Ferreira, autor de “Os demônios nascem duas vezes ” e criador do investigador – chefe Omar Fonseca, Joaquim Nogueira, criador do tira Venício e dos romances “Informações sobre a vítima” e “Vida pregressa”; Isto sem falar no conto que começou a saga há séculos , “Os três príncipes de Serendipi”.
 
Há muito tempo atrás, no país de Serendip, atual Sri Lanka, vivia um rei grande e poderoso de nome Giaffer. Ele tinha três filhos e a eles dedicava todo o seu amor. Enviou-os de viagem pra longe do reino para exercerem aprendizado. 
Ao chegarem ao exterior , resolveram descobrir pistas para identificar com precisão um camelo que jamais haviam visto. Concluíram, então, que o camelo era coxo, cego de um olho, sem um dos dentes, e transportava uma mulher grávida, carregado de mel de um lado e manteiga do outro. Encontraram um comerciante que procurava um outro e a ele relataram as suas conclusões imaginárias. O comerciante, pasmado, acusou-os de terem roubado o seu camelo e os levou ao Imperador Bahram, exigindo punição. Os três príncipes negaram o crime, ao que o Rei indagou como poderiam ter sido capazes de descrever com tanta precisão um camelo, sem nunca o terem visto. A partir das respostas, baseadas em evidências somadas em pequenas pistas, dadas pelos três príncipes, o Rei percebeu a inteligência dos herdeiros de Serendip.

Afirmaram que haviam deduzido que o camelo era cego do outro lado , pois a grama havia sido comida pelo lado da estrada onde estava menos verde. Também disseram que, como havia pedaços de grama meio mastigados na estrada, do tamanho de um dente de camelo, eles haviam deduzido que haviam caído através do espaço deixado por dente perdido na boca dele. Ainda, que como as marcas na estrada deixavam as impressões em apenas três metros, o traseiro estava sendo arrastado, o que indicava o animal ser coxo. A questão da carga, para os três príncipes, tinha sido muito simples, posto que haviam formigas de um lado indicando que tinham sido atraídas pelo mel, de um lado da estrada, e o outro lado apresentava manteiga derretida derramada. Quanto ao transporte da mulher, um dos príncipes disse: “Imaginei que o camelo transportava uma mulher, porque havia notado, próximo à trilha, onde o animal deixara marcas de ajoelhar-se, o rastro visível de pés, claramente femininos, onde tinha resquícios de urina humana que, pelo seu próprio odor, denotava ter sido deixados por uma mulher que tinha mantido relações sexuais há algum tempo. Um outro príncipe, esclareceu que concluíram sobre a gravidez da mulher, pois próximo às marcas dos pés, haviam marcas de mãos femininas, denotando que ela havia se apoiado com as mãos para urinar o que configurava o peso da gravidez. No momento em que terminavam o relato ao Imperador, adentrou à corte, um viajante que discorreu ter encontrado o camelo vagando pelo deserto e que o havia reconduzido ao dono, bem como sua carga e transporte. O enredo, baseado na descrição da vida do Imperador Persa Bahram V, que governou o Império Sassânida, relatada em poesia épica, em mescla natural de fatos históricos, e lendas folclóricas da região, foi transmitida através de centenas de anos através da tradição oral. Deduções estilo Holmes, séculos antes de Conan Doyle existir.
 
No Ocidente, a primeira publicação que se tem notícia é “Peregrinaggio di tre figluoli del re di Serendippo”, feita por Michele Tramezzino, em Veneza, 1557, que informou ter registrado a história a partir do relato de Chistophero Armeno, que havia traduzido do persa para o italiano o “Livro Um de Amir Khusrow”. Surgirá, depois, em língua francesa, no livro de De Mailly, datado de 1719 e impresso em Amsterdam em 1721. Até adquirir grande repercussão através da famosa carta de Horace Walpole (IV conde de Orford, 1717-1797), muito conhecido por ter escrito a célebre novela “O castelo de Otranto”) a seu amigo Mann, datada de 28 de janeiro de 1754, publicada em língua inglesa e republicadas diversas vezes nas “Letters of Horace Walpole”. Da sagacidade dos príncipes surgiu o termo “acaso feliz” , posteriormente incorporado à definição de “Serendipidade”.

Teria mais, muito mais, mas seria incompatível com o tamanho das crônicas, ensaios e contos moldados à minimalidade corrente das redes sociais (apesar de, paradoxalmente, muitos internautas lerem romances em e-book e I-Pad e não reclamarem). Enfim, coisas curiosas acontecem amiúde entre aficionados. Um amigo meu de longa data, ao saber que eu tinha ganhado de presente do compadre Armando Negreiros a coleção completa em português do “Mistério Magazine de Ellery Queen”, não resistiu e se largou de São Paulo só para vê-la ao vivo. Ou marcar e regar terreno, talvez, quem sabe. Mudo, olhos fixos nos volumes encadernados, após alguns instantes de admiração (ou inveja, não deu para diagnosticar bem) murmurou: Meu Deus! … Se eu morrer antes de você vou deixar de presente, viu? De resposta, um amém baixo e contemplativo sem nem olhar pra mim. E eu cá pensando com os meus botões, de repente, a esperança é a última que morre. Por que, então, não gostar, não amar tanto literatura policial?
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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