NAVEGAR É PRECISO, CRIAR NÃO É PRECISO –

Faz alguns dias, escutei, desavisadamente, alguém declamando um dos mais curiosos poemas de Fernando Pessoa (1888-1935), “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Baseando-se no que é historiado por Plutarco (46-126 d.C.) em suas “Vidas Paralelas”, diz-se que o poema repete uma alocução do general romano Pompeu Magno (106-48 a.C.), em uma de suas muitas campanhas militares, aos seus subordinados que, amedrontados, temiam em sair ao mar: “Navigare necesse; vivere non est necesse”. Mas a afirmação “Navegar é preciso, viver não é preciso”, no contexto do poema de Fernando Pessoa, tem intrigado a muitos, porque, pela sua “imprecisão”, pode ser entendida em mais de um sentido. Em um contexto mais literal, pode-se entender como se navegar fosse necessário; viver, não. Em um segundo sentido, menos literal, porém mais poético, pode significar que navegar é algo exato ou racional; a vida, não.

Coincidentemente, por aqueles dias, estava eu lendo um livro que tem uma relação muito interessante com o sentido menos literal, de inexatidão da vida, do verso de Fernando Pessoa: “Is Heathcliff a Murder? Puzzles in 19th Century Fiction”, por Jonh Sutherland (The World’s Classic, Oxford University Press, 1996). O autor, a partir de vários curtos ensaios, tenta “desvendar” certos enigmas/imprecisões presentes na ficção inglesa, sobretudo do período vitoriano.

Nesse livro, dois ensaios giram em torno do escritor William Wilkie Collins (1824-1889), cujas obras mais conhecidas, “The Woman in White” (1860) e “The Moonstone” (de 1868), classificadas à sua época como “sensation novels”, são consideradas hoje, juntamente com as obras de Edgar Allan Poe (1809-1849) e Émile Gaboriau (1832-1873), como as precursoras da ficção policial/detetivesca que hoje conhecemos. Collins, é bom registrar, era possuidor de educação jurídica formal, tendo, jovem, ainda na casa dos vinte, estudado direito no Lincoln’s Inn. No preâmbulo de “The Woman in White”, não coincidentemente, ele diz que a estória ali apresentada será contada por mais de uma pena, como a narração de um crime é apresentada perante uma corte, por mais de uma testemunha. Ele é ainda autor de mais de uma centena de obras de ficção, incluindo contos, peças teatrais e romances, e desfrutou de grande prestígio durante a era vitoriana. Muito importante para sua carreira foi a sua ligação com Charles Dickens (1812-1870), conhecidamente também um escritor com formação jurídica. Eles foram amigos e colaboradores mútuos durante toda a vida e, após a morte de Dickens em 1870, Collins, afirmam seus biógrafos, se tornou cada vez mais dependente do ópio, com o consequente declínio da qualidade de sua produção literária.

O fato é que Collins era conhecido, exatamente, pela extrema precisão que impunha – quanto a fatos, datas etc. – na elaboração de suas obras de ficção. Foi juntando uma coisa com a outra, juntando Pessoa com Collins, que fiquei matutando: se viver, como nos sugere o verso do grande português, não é preciso, por que danado romancear/poetar/criar deveria ser preciso (no sentido de exato, explicito pela última vez)?

A conclusão inexorável a que cheguei é que romancear/poetar/criar não deve ser preciso. Não que aqui defenda o desleixo ou o erro na literatura. Não é isso. Apenas, acredito, alguma irracionalidade ou mesmo ambiguidades devem ser consentidas (ou até incentivadas), e um rigor excessivo, seja em Collins ou qualquer outro autor, pode até gerar certas deficiências, porque nos retira a fundamental possibilidade de viajar, de supor, de imaginar e nos deleitar nas entrelinhas do texto de ficção ou poesia. Contemporâneo de Collins, Anthony Trollope (1815-1882), em sua “An Autobiography”, mesmo sem negar o imenso talento do colega, já dizia: “Collins parece estar me advertindo a lembrar que algo aconteceu exatamente meia hora depois das duas da manhã da segunda-feira”. Trollope, assim, não faz outra coisa senão nos advertir que um excessivo rigor pode nos privar da liberdade essencial para uma leitura pessoal.

Voltando a Fernando Pessoa e ao seu “Navegar é preciso, viver não é preciso”, o que tornou imortal esse poema foi, “precisamente”, essa sua “imprecisão” de sentido. Permitiu-nos duas (ou mais) leituras e a liberdade de escolhermos a criação que mais nos encante. Afinal, como disse o próprio Pessoa, em trecho do mesmo poema, “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”, seja lá o que danado isso signifique.

Sim, já ia me esquecendo: entenda esta crônica como você quiser.

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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