MUITO ALÉM DO SILOGISMO –

No artigo da semana passada, citando Francesco Ferrara (1877-1941) em “Interpretação e aplicação das leis” (tradução de Manuel A. D. de Andrade, Arménio Amado Editor Sucessor, 1963), alertei que não se deve ingenuamente acreditar que a atividade judicial se reduz a uma simples operação lógica neutra, de verificar se os fatos do caso se subsumem numa hipótese legal e, assim, proferir uma sentença/solução – um silogismo em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença –, “porque na aplicação do direito entram ainda fatores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se degradar num autômato de decisões”.

Claro que há, mas são poucos, juízes que estão arraigados – às vezes por mentalidade; às vezes por preguiça mesmo – àquela ideia, inspirada na lição de Montesquieu (1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a “boca que pronuncia as palavras da lei”. Semelhante maneira de proceder poderá ser a de um mau juiz, mas não é a que corresponde aos fins do direito. E, mesmo assim, essa neutralidade é mais aparente que real. A própria opção de passividade tem suas consequências e não é, assim, completamente neutra.

Na verdade, tomando por referência qualquer país, os juízes, como lembra William L. Reynolds (em “Judicial Process in a nutshell”, West Publishing Co., 1991), com suas experiências, seus diferentes talentos e perícias, decidem de formas muito diferentes. Como modelo geralmente aceito, tem-se uma exposição da história do caso, um relato dos fatos envolvidos, a apresentação das questões a serem decididas, uma explicação (ou motivação) de como essas questões estão sendo resolvidas e a resolução do que foi pedido. A partir daí, as coisas variam bastante. Alguns juízes são prolixos; outros, lacônicos. A qualidade da argumentação também varia consideravelmente. Alguns juízes contentam-se em confiar na autoridade encontrada em leis e códigos, em precedentes e na doutrina. Outros investigam profundamente todos os pormenores do caso, revolvendo os fatos (e é importante lembrar que alguns juízes têm, mais do que outros, a inclinação para reinterpretar os fatos do caso em julgamento), investigando cada questão apresentada como se a vissem pela primeira vez. E todos eles – ou, pelo menos, os de boa-fé – acreditam estar justificando suas decisões de uma maneira satisfatória.

​Doutra banda, desde o tempo de Karl Llewellyn (1893-1962) e Jerome Frank (1889-1957), o “realismo jurídico americano” nos mostrou que mais importante do que o juiz diz é o que ele faz. Foi especialmente Jerome Frank que nos explicou, como já disse certa vez aqui, que uma decisão judicial é muito mais do que o resultado da simples aplicação de uma norma aos fatos do caso. Primeiramente, a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão final, assim como a interpretação da norma é algo muito mais complexo que uma simples releitura do seu texto, seguida de um processo analítico de subsunção. E mais: em conjunto com os outros realistas, Frank nos mostrou que os juízes decidem baseados numa variedade de fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Os reais fundamentos da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios, extremamente influenciados pelos preconceitos e valores do julgador.

​Se isso parece fato – refiro-me ao que está por detrás do aparente silogismo –, o erro está no exagero de não se ter na lei ou nos precedentes, às vezes, nem minimamente, o correto freio/balizamento para a decisão judicial. O grande problema é que todos nós, e isso inclui os juízes, temos preferências e valores diversos, e nossas decisões, até mesmo aquelas do cotidiano, para o bem ou para o mal, são afetadas por essas características herdadas ou adquiridas, implicando, não raramente, na ausência de freios e balizamentos, indesejável discricionariedade. As decisões tomadas no exercício da magistratura, reitero, não fogem a esse contexto. Isso sem falar que o comportamento dos juízes também é afetado, nos tribunais, onde as questões são finalmente decididas, pelo fato de que estes são órgãos colegiados, que assim trabalham com toda a força mas também com todas as fraquezas inerentes à dinâmica de pequenos grupos. Isso em parte explica a pluralidade interpretativa/decisória, tão deletéria para o princípio da igualdade, que os diversos órgãos jurisdicionais acabam produzindo. O direito passa a ser simplesmente o que juízes e tribunais, individual e erraticamente, declaram e decidem.

​Para suavizar essa dependência peculiar do juiz de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo pessoal, mecanismos e padrões de comportamento devem ser sempre pensados, criados e fomentados. Dar maior dignidade à lei, tão amesquinhada nos nossos dias, é fundamental. Exigir o respeito aos precedentes, idem. Porque isso obriga o juiz (e os tribunais, via de consequência), como certa vez disse Andrés Ollero Tassara (em sua obra “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial”, publicada pelo Centro de Estudios Constitucionales de Madrid, 1989), “a controlar seus próprios juízos prévios em diálogos com juízos próprios e alheios. Assim se tornará mais dono de si mesmo e aumentará também a dimensão de sua independência; porque nada corrói mais a confiança na Justiça do que as aparências de arbitrariedade (‘independência’ sem controle) nos responsáveis por realizá-la”.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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