MILAGRE OU OBRA DO LIVRE ARBÍTRIO –

A onda de violência que assola o país atingiu proporções incontroláveis, mas, no Rio Grande do Norte em particular, assemelha-se a um surto epidêmico de moléstia imune a qualquer vacina.

Mesmo diante da gravidade de uma epidemia, é comum lançarmos mão de mecanismos de defesa que nos induz pensar na impossibilidade de sermos atingidos pelo mal, neste caso, ser vitimado pela bandidagem institucionalizada.

Tal sensação de imunidade me abandonou ao tomar conhecimento do atentado sofrido pelo médico Airton Wanderley, no último dia 8 de agosto, em Natal, ao estacionar o seu carro em uma farmácia que acabara de ser assaltada.

Conheço Airton há muitos anos, somos conterrâneos e nossas famílias gozam de boa amizade, em decorrência de ambas possuírem raízes fincadas em Pombal, cidade do Sertão paraibano.

Médico, 86 anos, formado no Rio de Janeiro, respeitado como clínico-geral e professor, Airton já perdeu as contas de quantas pessoas operou; tampouco, sabe precisar o número de pacientes que salvou da morte em centros cirúrgicos.

Pois bem, faltou pouco, muito pouco para o nome de Airton Wanderley ilustrar o vergonhoso quadro estatístico de vítimas de latrocínio na Cidade do Sol. Isso foi evitado, em parte, pela atitude rápida, segura e humanitária de um funcionário da tal farmácia.

João Maria do Nascimento Lourenço é o seu nome. Porte atlético, 36 anos, 110kg e 1,92m de altura. Casado, pai de uma filha, homem de poucas palavras, sério e, por causa da timidez, quase não sorri.

Tudo aconteceu muito rápido, não mais que três, quatro minutos. Dois homens armados anunciaram o assalto a clientes e funcionários da farmácia. Levaram o dinheiro do caixa, pertences de clientes e produtos das prateleiras, e saíram às pressas.

O pavor estabelecido no recinto, assim que os assaltantes saíram atirando, induziu todos a se protegerem nos depósitos da farmácia. Todos, menos João Lourenço, que correu atrás dos bandidos, sem qualquer razão plausível. Eis o seu relato:

“Eu saí e me dirigi para o estacionamento no pátio interno da farmácia. Não me pergunte o motivo. Movia-me uma força estranha orientando meus passos… Vi uma camioneta, e dela me aproximei. Percebi logo duas perfurações no para-brisas; deduzi serem de balas. Abri a porta e notei um senhor ao telefone, coberto de sangue. Escutei-o dizer: ‘Flávio, meu filho, eu fui assaltado. Eu vou morrer!’…”

– “…Era muito sangue. Retirei a bata e com ela tentei improvisar um tampão para estancar o sangue da face, jorrando pela boca e nariz. Insisti para ele erguer a cabeça e respirar. E ele respondeu: ‘Eu sou médico. Sei o que estou fazendo!’.”

-“ Várias vezes gritei pedindo socorro para o levarmos a um hospital, mas as pessoas diziam para aguardarmos o SAMU. Inconformado, roguei por um motorista, pois se continuássemos ali sem ajuda médica, ele morreria sufocado pelo sangue antes do SAMU chegar. Um cliente conhecido se propôs dirigir a camioneta…”

-“…Retirei a capota da carroceria e, com ele nos braços, sentei-me no lastro. A essa altura a polícia já havia chegado e se encarregou de abrir caminho até o Hospital Walfredo Gurgel. No trajeto pensei que ele havia morrido e outra vez insisti para que se mantivesse acordado. Percebi que abrira os olhos. Então, passei a cobrar pressa ao motorista. Já no hospital liguei para o seu filho dando notícias da situação.

João Lourenço não sabe dirigir e tem verdadeiro pavor a sangue. Tanto sua bata como a camisa ficaram ensopadas com o sangue de Airton. É dele a reflexão:

– “Eu não tenho religião, mas creio em Deus! Naquela noite não fui eu quem agiu daquela forma. Uma força desconhecida me guiou até o estacionamento e me fez tomar todas aquelas atitudes. Ainda estou sem acreditar no que aconteceu!”.

Nem precisa entender, João Lourenço, você é um daqueles extraordinários heróis anônimos cujos atos dispensam explicações. E mais: graças a tal força desconhecida Airton está se recuperando bem, em sua casa.

 

 

José Narcelio Marques Sousa – Engenheiro civil e escritor – [email protected]

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