MANDEI OUTRO DIA DESSES. VOCÊ VIU? UM CHEIRO –

Sou , mas não mais estou, médico. Sabia? O afazer, aquela alquimia de ter que enfrentar a dor física dos outros, um dia chega ao limite temporal. Tantos anos, fazendo todo o santo dia a mesma coisa pra ganhar a vida, me fez constatar que quem tem ideia fixa é doido. Tudo é relativo, não é? Foi quando ele jogou a casca de banana e eu escorreguei. Relativo? Tem certeza? Absoluta, tenho sim! Você é contraditório, hein? É sempre assim, cara, esqueça , nada é perfeito. O “métro, boulot, dodo” da língua francesa e todas aquelas oxitonias postas em prática com a boca deles a fazer beicinho como quem se prepara pra transformar sons em ósculos, ainda me encanta. E daí? E daí, que eu continuo o mesmo pobre diabo, curtindo a mesma liberdade dos que cumprem pena em regime semiaberto. Saindo pra rua todas as manhãs e dormindo em endereço certo. Só mudou o foco. E ponho fé nisso. Pra se alimentar a alma, sair de casa também é preciso. Sempre em silêncio. Agora, então, com a liberdade à prova, aberto à experimentação de novos caminhos e possibilidades. Você hoje está um tanto Aristoteliano, meio peripatético, hein? Peripatético, talvez , pois há muito tempo venho tentando imitar um querido amigo meu, o poetinha Volonté, que se ensina ao andar nas ruas. Saindo à caça. Sempre em silêncio. Aristotélico nunca, pois continuo a praticar ao exagero as expressões dos meus gestos. Apesar da necessidade do silêncio em volta deles. Na beira de uma praia deserta. Olhando a mata atlântica com os olhos de quem pedala. Explorando afetos . E sorrindo sempre, para que também me cacem. Abrindo páginas, empurrando portas. Vendo as coisas com olhos estrangeiros. Vendo um filme do Kim-Ki-Duk ou do Bella Tarr. Ouvindo o ruído do silêncio onde ele talvez se encontra. Tudo o que me provoca o prazer de ver, tocar, e sentir. Pois é, e eu aqui nesse solilóquio como se diálogo fosse, sentindo uma fome danada por dentro e bebendo um tanto Paulinho da Viola. Olá, como vai?/Eu vou indo, e você tudo bem?/Tudo bem, eu vou indo correndo/Pegar meu lugar no futuro, e você?/Tudo bem, eu vou indo em busca/De um sono tranquilo, quem sabe? Quanto tempo/ Pois é, quanto tempo…

 

 

 

José Delfino – Médico, poeta e músico
As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *