FIM DE LINHA –

O trem ligeiro de Braga para Lisboa partiu rigorosamente no horário marcado: 13h07. Como são pontuais os trens! Isso lá é horário de gente? Dois minutos antes, três depois e seria muito mais compreensível. Mas, a pontualidade dos trens sempre foi assim, quase irritante. Até parece que todos são ingleses. Qualquer minuto é igual, ganha solenidade. Inclusive esses quebrados.

Partiu sem apitos, sem aqueles velhos sinais que se perderam no tempo. Apenas uns sons pálidos imitando os antigos resfôlegos das locomotivas de outrora. Talvez do sistema de freios. Permanece apenas aquele tlec tlec seco, metálico das rodas em atrito com os trilhos. E o balanço que, garante a lenda, inspirou a música de Glenn Miller.

A velocidade descomunal chegava a 220 km/hora em alguns trechos do trajeto. O sistema de pendulação ativa permite aos comboios vencer curvas em altas velocidades, ao contrário dos trens convencionais. E ajuda a batizar o Alfa Pendular, serviço premium da Comboios de Portugal.

Porto, Vila Nova de Gaia, Aveiro e Coimbra vão marcando pontos principais no trajeto que oferece as paisagens características do deslumbrante ambiente das aldeias e freguesias portuguesas, repleto de uvas, azeitonas, verduras, ovelhas, vinícolas… E de uma gente simpática e acolhedora.

É preciso certa atenção na bilheteria da estação para driblar alguns desconfortos. Viajar de costas (metade dos passageiros de cada vagão) pode ser bem desagradável para quem sente enjoos. Ainda mais em horários de refeições.

É possível amenizar o problema comprando o bilhete da Classe Conforto, onde as poltronas são mais largas e apenas três por fileira, uma delas individual. Um arremedo das lendárias primeiras classes, onde também a metade viaja de costas. Mas, com bilhete mais caro e menos gente por vagão, diminuem as chances de surpresas desagradáveis.

Continua impressionante a secular capacidade dos cobradores de memorizar rostos, indispensável para a função de orientar o fluxo e comprovar o pagamento de quem entra e sai nas diversas estações do trajeto.

O cobrador de trinta e poucos anos parou ao lado da poltrona à frente da minha. O homem, que embarcara pouco antes, apresentou um bilhete diferente do meu, um papel bem maior. Comprado com o desconto garantido para quem atingiu determinada idade.

O rapaz pediu documento e comprovou a desconfiança: o passageiro tinha dois anos menos. Imediatamente, iniciou uma reprimenda elegante, mas definitiva. Ao final, foi taxativo: o homem teria de pagar mais quinze euros para completar o valor normal do bilhete. E alertou que aquele tipo de infração acarretava também uma multa de mais vinte e cinco euros que, excepcionalmente, decidira não cobrar.

Sem argumento, restou ao homem estender o cartão de crédito ao rapaz. Foi informado de que o pagamento dentro do trem só poderia ser feito em dinheiro. Verdade ou mentira, disse que não tinha. Se aquilo era um estratagema, a resposta veio irredutível: teria de descer na próxima estação e regularizar a situação na bilheteria, onde cartões eram aceitos. E que o tempo da parada era curto, deveria esperar o próximo comboio.

O passageiro, envergonhado, se desculpou – ali, eu estava inclinado a pagar por ele. O rapaz disse que não havia desculpas para aquela atitude, pois era uma infração cometida por arbítrio, já que a legislação era clara a respeito do direito a desconto. A palavra “arbítrio” soou alto no meu ouvido, como um apito de árbitro de futebol. O cartão amarelo era merecido. Para o homem e para mim. Escapei por um fio! O cobrador deu o assunto por encerrado com altivez e se afastou pelo corredor.

O homem tomou o celular e começou a explicar que chegaria atrasado ao compromisso em Lisboa. Na estação de Aveiro, pegou a pequena mala no bagageiro e desceu do vagão com rapidez, cabisbaixo. Lá adiante, o cobrador, implacável, dominava a cena. Exalava o ar de guardião das normas, de dever cumprido.

O trem voltou a se movimentar e vi o homem em pé na plataforma da estação, de novo ao telefone. Não havia tomado ainda nenhuma providência. Segui a próxima meia hora pensando naquele episódio cheio de variáveis.

Claro que havia ali uma questão humana inquietante. Talvez – e era bem provável – ele não tivesse dinheiro suficiente e tentou diminuir as despesas da viagem. E outra questão humana ainda mais inquietante: a prática do desrespeito às normas, inclusive lesando terceiros. Afinal, o desconto terminava sendo pago pelo governo – por todos.

Tentei me colocar no lugar daquele homem, interrompido pela humilhação que acabou atraindo por livre arbítrio. Comecei a me convencer de que estaria arrependido se tivesse pago a diferença do bilhete. Mesmo que recebesse de volta, não seria a melhor alternativa. Afinal, havia outros trens fazendo o mesmo trajeto. Não tão rápidos, não tão confortáveis. Bem mais baratos. Questão de escolha.

A viagem avançou para além daquela meia hora de meditação, a tarde caiu feito um viaduto e João Bosco entrou na minha cabeça tocando daquele jeito fabuloso. A maravilha que essas bugigangas eletrônicas conseguem ser de vez em quando! A internet do trem é perfeita. E gratuita, claro, incluída no preço do bilhete.

Mesmo já tendo tomado partido pelo cobrador, pensei naquele homem que desceu do trem lá atrás, quando ainda havia tarde. Fiquei na dúvida se ele se foi cedo ou tarde. Talvez sentido alguma dor, eu não sei, ele foi.

Mas sei que uma dor assim pungente

Não há de ser inutilmente

A esperança dança

Na corda bamba, de sombrinha

E em cada passo dessa linha

Pode se machucar

Lisboa estava chegando e eu pude ir até o fim da linha. Fui o último a descer daquele trem. Rumei devagar pela plataforma, ficando para trás das pessoas apressadas que foram se distanciando cada vez mais e sumindo em diversas direções.

Tomei um café para ajudar a espantar o frio. Fiquei olhando as pessoas com seus gorros, sobretudos e cachecóis, indo e vindo no fluxo implacável da vida. Não senti saudade do sol de onde vim, o frio me faz bem.

Ajustei o cachecol, fechei os botões do sobretudo. Peguei o chapéu que havia pousado sobre o balcão. Troquei um sorriso breve com a balconista bonita – adorei a malícia daquele olhar – e fui embora pensando em nada. Desci as escadas, uma senhora me ajudou com a máquina de bilhetes, entrei no metrô e me assustei com o silêncio reinante. Ao menos, um pequeno grupo de estudantes riu de algum gracejo. E houve um abraço terno entre dois deles.

Nada mais belo que abraço sereno

E sabor de perdão

Ver a beleza

E em gesto pequeno ter a imensidão

Como espalhar por aí

Qualquer coisa que faça sorrir

Aquietar o silêncio das dores daqui

Não havia vivalma além de mim. Subi sozinho os longos lances de escadas rolantes da estação. Os azulejos dominavam o ambiente e havia muitas citações literárias ao longo do caminho. Atravessei a rua já enxergando o luminoso do meu hotel refletido no chão molhado pela chuva que caíra mais cedo.

Pensei no homem que desceu do trem antes da hora. Onde estaria agora? Era óbvio, sequer lembrava de mim, se é que me notou – e quase lhe paguei a diferença do bilhete, que teria resolvido tudo. Ou apenas errado junto.

Eu estava cansado. Um banho quente, uma sopa servida no quarto e me atirei na cama. Nem sei que tamanho teve a noite. A alegria estava anotada na agenda da manhã seguinte, trazida por uns amigos que estavam vindo de Madri. Haveria festa.

Trechos de:

O bêbado e a equilibrista (João Bosco-Aldir Blanc)

Mais bonito não há (Milton Nascimento-Tiago Iorc)

 

 

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

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