FILHOS DE PADRES –

O celibato clerical foi instituído pela Igreja, em 1139, pelo Pontífice Gregório I, a fim de evitar excessos sentimentais, carnais, entre os prelados e fieis do sexo feminino.

Antes, não havia vedação canônica. Clérigos e até Papas tiveram famílias e descendentes, que se elegeram para comandar a Santa Sé.

Mero regramento canônico, administrativo!

Ontologicamente, o que não é proibido, é permitido. Todavia, após a proibição religiosa as transgressões tornaram-se escandalosas e depreciativas no que tange à honorabilidade procedimental no âmbito do clero.

Os meandros dos confessionários caracterizaram-se como inconfessáveis.

Um dos incontáveis casos verificados no Brasil foi o nascimento do celebérrimo filho do padre José Beviláqua, sacerdote italiano, que veio salvarse de naufrágio nas costas do Ceará.

Clóvis Beviláqua foi um dos rebentos do rebanho clerical de seu pai, o Padre José Beviláqua, fruto do amor intra muros com a predileta, a pupila Martiniana Maria de Jesus, uma piauiense.

A propósito, o historiador holandês Caspar Barlaeus, que esteve em Recife com o batavo Príncipe de Nassau, escreveu em latim, em 1647, em obra editada em Amsterdam, onde afirma: “Ultra aequinoxialem non peccavi”, ou seja- aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado.

Seria uma linha divisória entre a virtude e o vício!

Em Natal, capital potiguar, pelas mãos do saudoso e eterno Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Enélio Lima Petrovich, dileto amigo de Câmara Cascudo, teve-se acesso a esta preciosa relíquia, que integra o acervo da entidade norte-rio-grandense.

Uma raridade a espelhar o Tempo, marcando-o de forma indissolúvel.

Nestes alinhavos filiais, recorda-se a figura do Padre Diogo Antônio Feijó, filho do Padre Félix Antônio Feijó com Maria Joaquina de Carvalho, que veio a se tornar uma das mais proeminentes figuras da história nacional, responsável pela implantação da Guarda Nacional, quando Ministro da Justiça na época da Regência Trina Permanente, cuja história romanceada é descrita na obra- Lagoa dos Cavalos, de autoria do autor desta crônica, que mereceu da crítica nacional generosa manifestação como um dos dez importantes romances brasileiros.

Por sua vez, o cratense, padre José Martiniano de Alencar, vivia em mancebia com sua prima Ana Josefina de Alencar, com quem teve doze filhos e sendo ele presbítero da Ordem de São Pedro, mandou lavrar escritura pública, em abono da verdade e desencargo de consciência, reconhecendo-os como filhos legítimos.

Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, carmelita, era um dos líderes da Confederação do Equador, razão pela qual foi fuzilado, deixando três filhas- Carlota, Joaninha e Aninha, cognominadas de “sobrinhas”.

Um dos mais valorosos artífices da Revolução de 1817 foi o padre/ maçom João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, seminarista de Olinda, ilustrador das obras de Arruda Câmara, que foi membro da Academia Real das Sciências. Suicidou-se, tendo as tropas imperiais cortado sua cabeça e a exposta em praça pública. Deixou dois filhos: Filadelfa Pessoa de Albuquerque Monteiro e Hermano Pessoa de Albuquerque Monteiro, Segundo Sargento da 2ª Companhia, do 13º Batalhão de Recife.

Por sua vez, o Reverendíssimo Padre Manoel da Costa do Carmo, reconheceu em testamento, ser o genitor do Capitão Manoel Tomé de Jesus, Senhor do Engenho Noruega, Comandante Supremo da Guarda Nacional, em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco.

Além, o Padre Roma (José Ignácio Ribeiro de Abreu e Lima), líder independentista, companheiro de Simón Bolivar, era o pai do General José Ignácio de Abreu e Lima.

Entre outros tantos, o Padre Simeão Estilita Lopes Zedes, vigário da centenária Santa Luzia dos Goyazes, teve dois filhos com Ana da Cunha Coutinho e, com Ana Benedita do Espírito Santo, três. Gostava das Anas! Madrinha foi Margarida Gonçalves do Amor Divino, mãe de Inhozinha, terceira amásia do Padre Simeão com a qual teve ele cinco filhos.

Ensinava-nos o adágio português, assim enunciado: “Feliz que nem filho de padre.”

José Sizenando Jaime, historiador goiano, registrava de forma lapidar a sociedade da hinterlândia brasileira, assim:

“No Império, padre com filharada e mulher, teúda e manteúda, constituía coisa natural. Ninguém reparava. Filho do padre no sertão nordestino era uma espécie de nobreza. Hoje em dia, sem batina e sem tonsura, vestido como um qualquer, o mau padre é um lobo com outra pele, hipócrita.”

Ainda, o padre João Marrocos Teles, de Sobral, no Ceará, era o pai de José Joaquim Teles Marrocos, que foi expulso do Seminário da Prainha, por ser filho de clérigo, embora primo do Padre Cícero Romão.

Padre Cícero Romão, já afirmava:

“É preciso dar um basta à anarquia: padres vivem amancebados, lobisomem corre solto no sertão.”

Dentre estes rebentos clericais, afigura-se-nos que Clóvis Beviláqua não tenha conseguido ingressar no Seminário Diocesano de Fortaleza, face ao intransponível exame de genere e moribus, primeiro passo para ingresso na carreira eclesiástica.

Esta negativa diocesana conduziu Clóvis Beviláqua ao mundo do Direito no Rio de Janeiro, aprimorando seus conhecimentos forjados na secular Faculdade de Direito de Olinda, criada em 11 de agosto de 1827, por D. Pedro I.

Clóvis Beviláqua, Mestre dos Mestres, foi o responsável pelo projeto do Código Civil brasileiro, de 1916, promulgado em 1917, após enfrentar os ciúmes de Ruy Barbosa, face ter sido o ilustre soteropolitano preterido por Epitácio Pessoa, então Ministro da Justiça.

Clóvis era um homem simples, que chegou a ponto de recusar convite do Presidente Hermes da Fonseca para ser Ministro da Suprema Corte, alegando não ter estofo para tanto.

 Vejamos a realidade atual!

Ao conviver-se, desde os primórdios de Brasília, com o ilustre professor de Direito Internacional, Mauro Cunha Campos de Morais e Castro, saudoso presidente da Academia de Letras de Brasília, se recebeu deste notável jurisconsulto as iluminações a respeito de Clóvis Beviláqua, seu professor e dileto amigo da banca universitária.

Por ineditismo, traz-se a imagem da entrevista concedida por Clóvis Beviláqua aos bacharéis da época, demonstrando-se a grandeza do conhecimento do Direito, aliada à generosidade e simplicidade deste filho de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa, das faldas de Ibiapina, no sertão do Estado do Ceará.

Mauro Cunha Campos de Morais e Castro, entrevistando Clóvis Beviláqua, Mestre dos Mestres, em companhia de Vicente Pinto, Camilo Pereira Carneiro Sobrinho

(Com o advento da pandemia e com a antevisão da Open University, inova-se a junção da crônica, sucinta pela sua essência, com a completude de um vídeo a dimensionar a fala, a visão e as reflexões testemunhais, mundo da oralidade.)

https://youtu.be/gv2wHZYH__I

 

 

José Carlos Gentilli – Escritor, membro da Academia de Ciências de Lisboa e Presidente Perpétuo da Academia de Letras de Brasília

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