Somente após trinta anos de convivência eu soube que meu amigo Ferdinando fugira para casar com a sua única e querida esposa, quando adolescentes. Ele me pediu para guardar reserva acerca do fato, mas, como não existe apenas um Ferdinando no mundo, ninguém identificará meu amigo neste relato.

Dessa forma o segredo continuará guardado comigo como se estivesse num túmulo e eu poderei abordar a matéria sem traumas. Aliás, foi uma exceção que abri, pois sempre fui sincero ao alertar a todos: se alguém tiver lá os seus assuntos secretos e desejar mantê-los ocultos, nada de me confidenciá-los.

Pois bem! O tema veio à baila porque o costume causador de espanto e desaprovação na sociedade de antigamente, simplesmente desapareceu de cena. Isso mesmo! Acabou-se o romantismo e a atratividade de raptar uma jovem para obrigar a família da dita a aceitar a união do casal – recorria-se a tal prática quando existiam sérias restrições ao relacionamento amoroso em andamento.

Naquela época, após a apropriação indébita da amada, esperava-se o desenrolar dos fatos para a formalização da união. Especulava-se a postura de ambas as famílias quanto à forma de amoldar o ato tresloucado do rapaz ao rigor das regras de enlaces e tradições vigentes.

Então surgiam os questionamentos. Quando, como e em quais circunstâncias se dará a reparação do roubo da donzela? Haverá matrimônio no religioso ou apenas no civil? A jovem casará de branco dando uma prova cabal da virgindade preservada ou divulgará a consumação do ato trajando uma outra cor? Tudo isso consistia num prato cheio para fofocas ou de combustível para tiras picantes de colunas sociais, numa sociedade carente de escândalos ou de novidades chocantes.

E hoje, qual seria o comportamento das famílias e da sociedade perante um rapto de donzela para fim casamenteiro? Ah, gente, no mínimo serviria para gozações de toda ordem e natureza. Os tempos são outros e nem em pensamento tal prática se adequaria à nossa realidade.

Primeiro, porque é desnecessário, trabalhoso e careta para o jovem exercitar o rapto na acepção fiel da palavra. Segundo, por não haver espaço para a encenação, uma vez que o problema se resolve com um simples convite à parceira, e ambos viverão juntos sem qualquer lampejo de arrependimento ou dor na consciência. Isso, sem levar em conta a satisfação dos pais pela economia de despesas com as bodas.

E quanto a repercussão no âmbito social? Qual é essa, irmão? Não é motivo de preocupação, pois comentários são descartados em uniões do tipo pela banalização da ocorrência.

Até meados do século passado a conversa era outra, porque a virgindade ainda era valorizada antes do casamento. Após o advento da pílula anticoncepcional tudo mudou. Para melhor, admitem as pesquisas de opinião pública, porquanto deu início à liberação sexual feminina.

Na verdade, os raptos de antigamente não passavam de atos impensados, motivados pela paixão arrebatadora de casais enamorados, interpretados por donzelas sonhadoras como manifestações explícitas de amor profundo.

Longe de menosprezar a conduta do passado, exalto o costume do presente que, descartando a hipocrisia, prioriza a liberdade e a honestidade de decisões em assuntos do coração.

José Narcelio Marques Sousa é engenheiro civil.

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

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