DO EU ORAL –
Talvez eu seja um cara complicado. O diagnóstico certo não pintou, ainda. Em meio a toda essa confusão, bem no olho do furacão, que dia desses eu soube do detalhe meteorológico que nele não tem vento algum, me chega a impressão que não se deveria ligar nem impor nada a ninguém. Já bastam as rotinas. Existem as das vidas leves e as das vidas pesadas. Entretanto, o peso adequado e justo a ser atribuído a cada uma delas deveria depender da resiliência de cada um ao encará-las. Ao procurar o lado lúdico delas, ao achar graça do repetitivo delas, pois costumeiramente elas sempre se exteriorizam em diferentes nuanças, nem sempre negativas. E fazer sempre o esforço em imprimir o grau de doçura suficiente ao dar som às nossas palavras como algo agradável de serem ouvidas.
 
Difícil se chegar a tal ponto. Questão de prática, de seguir sempre inventando, de cortar arestas, de praticar a irreverência. Taí o segredo do bom papo: contar piada, conversar besteira, onde tudo, até um desbocado “tomar no cu”, se encaixa bem. Sempre existirão os emocionalmente excluídos, os carentes de um simples toque de mão, os que anseiam um olhar de admiração. Faça isto, ele (o nosso olhar) pode até ter um quê de falsidade, que importa, eles nunca irão saber, importa só o que funciona. É importante saber lidar com quem não tem com quem ficar no escurinho do cinema, com os que vivem sem poder encostar o corpo em outro, quando expostos aos lençóis das noites de frio, sem ter com quem partilhar problemas, sem ter com quem viajar nos feriados. Até chegar aos que não têm, nem mesmo, com quem dividir a conta do bar.
 
Por isso é que sobram os papos de botequins, onde parece que os donos deles mantém um serviço permanente de salvação de mágoas. Daí existirem neles (nos bares) ruídos que mais parecem explosões de bombas humanas. Daí eu acreditar que nada na vida, independentemente de classe social, poderia se aproximar do entusiasmo e a alegria alimentados por um papo, quase bêbado, nas calçadas do mundo, onde se perdeu a capacidade de prestar atenção às coisas. Desde os que dormem com fome nas ruas, até os que sabem fazem belas “carbonaras” e as desperdiçam, engolindo-as, apressados, sem sentir o gosto delas, pra não perder a continuação do enredo da novela da Globo das nove; ou quando viajamos, ou onde quer que possamos estar, sempre à mercê dos smartphones, em vez de prestar atenção à paisagem.
 
Daí todo o cuidado. Daí a importância do modo de verbalizar, que uma vez bem exercitado, facilita o alcance do dito “ponto de cocada”. Procuro, na maioria das vezes, o contra fluxo. Se o assunto é futebol, tento o subterfúgio, tergiverso, não digo que detesto o esporte. Ao invés de investir na falsa posição de torcedor fanático, digo que tenho um irmão, um abcedista ferrenho, que doou o portão do campo do América em homenagem ao nosso pai, já falecido, que era Americano convicto. Os “Ah é ?” “E foi?” apaziguam tudo em curto prazo.
 
Evito o assunto política e /ou religião, também. Se não der, nem tento convencê-los de certas convicções que tenho e guardo pra mim, como a de que o Cristianismo e o nazismo são religiões e mataram milhões por ódio fervoroso. Ou que o capitalismo mata milhões por pura ganância unida à indiferença, ou que o totalitarismo, essa outra crença religiosa, que distribuindo pobreza sem praticar liberdade, mesmo assim, matou um porrilhão de gente e também não deu certo em parte alguma. Nunca, nem insinuo, que Cristo nada escreveu, e até hoje falam desse judeu genial, pra não correr o alto risco de ser mal compreendido e alguns idiotas cometerem o desatino comparativo puxando o assunto Lula, o que me irrita.
 
Nem pensar em tocar em teorias como a que o tráfico de escravos não derivou de ódio racista, que o pessoal só investia e se limitava a comprar as ações das companhias contrárias ao abolicionismo. Conversas amenas, até fofocas, são preferíveis, fazem bem melhor ao ego e ao espírito. Sempre procuro não alimentar pequenas esperanças para evitar grandes frustrações. Esta a razão principal que me força a não ter grandes amigos de profissão. Claro que possuo, alguns, até do peito, mas limitados a uma meia dúzia de três ou quatro. O convívio indiscriminado com médicos me pareceria ser o passaporte da conversa monocórdica e sacal, em sua maioria circunscrita à especialidade de cada um deles. E os leigos, ao redor, na tentativa infrutífera de baixar o nível, apenas abrindo e fechando suas bocas, levantando suas mãos, engolindo ar, como quem a pedir cartas que nunca chegam deste jogo de azar de egos inflados.
 
Afinal, um bom papo pareceria ser o arremedo da felicidade, principalmente quando regado a qualquer bebida de alta velocidade, como o uísque ou a cachaça (a maioria prefere cerveja, mas tudo bem) e ideias rasteiras como tira-gosto, salgadas ou doces, boas até quando o recheio dos petiscos, às vezes, é uma ruma de amigos fabricados no Paraguai. Como se diz, o urubu é covarde e sarcófago, o falcão voa em círculos e ataca pelas costas, o cavalo dá coices e agrada autoridades, o cachorro late e estraçalha, o gato é cínico e falso, o porco faz a maior sujeira e um barulho chato, o rato come queijo e transmite doenças, o macaco imitando, passa o tempo, a hiena come merda e ri, o caranguejo, pior ainda, come bosta e anda pra trás. Pobre deles, que não degustam vinho.
 
Mas o homem, essa obra-prima da natureza, feito à imagem e semelhança de um ser Supremo, por pensar, falar, e ter alma, dizem, faz tudo isso com bem mais classe. Algumas alternativas existem, como viver a escorregar os dedos em laptops, acariciar telas de Ipads, ler livros de noite com todas as luzes apagadas (é possível, sim, compre um Kindle ou um LEV) e se o dinheiro está curto, baixe de clássicos até as últimas novidades literárias na Internet, e leia, ou ouça, onde bem entender. Vá fundo, invista na sua oralidade interior. Ou, então, pare com tudo e siga em alienação à morte, trabalhando as 24 horas do dia, com todo os riscos de morte e o sepultamento afetivo em vida, com toda a raiva do mundo, de preferência. Deus me livre de manter a rima dos meus lábios “colada”, e o verbo, que basta à minha boca e exercita a minha língua, “calado”, também. Por conta da troca de vogais, pra abranger sentidos, eu não brigo.
José Delfino – Médico, músico e poeta.
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *