Tentamos e não conseguimos viver na Utopia, o país imaginário de Thomas Morus (1480-1535), escritor inglês, onde um governo organizado da melhor forma possível, proporcionaria ótimas condições de vida a um povo equilibrado e feliz. Vivemos sim, e hoje paradoxalmente, um mundo a sugerir uma sociedade futura caracterizada por condições de vida alienantes.
 
Com o objetivo de criticar as tendências da sociedade atual e alertar para a possibilidade disto vir a acontecer, contos, novelas, romances, filmes de ficção científica como “Bright Phoenix” “Fahrenheit 451”, “1984”, “Alphaville “, “Her”, “ Matrix “ dentre outros, alicerçam esta tese. Neles, Bradbury, Orwell, Godard, Truffaut, e mais recentemente Spike Jonze, discutem temas distópicos como a queima de livros visando a supressão de ideias dissidentes; o futuro onde a livre expressão seria proibida; a opinião própria considerada antissocial e hedonista; a crescente invasão subliminar nos direitos das pessoas. Enfim  um mundo onde o pensamento crítico seria suprimido pela difusa intromissão cibernética no controle da vida dos cidadãos.
 
Desde a publicação de “1984” de Orwell termos como “Big Brother”, e conceitos como “Duplipensar” e “Novilíngua” estão sendo paulatinamente inseridos no vernáculo popular. Pior, ainda, no inconsciente coletivo. Mais recentemente, no filme “Her”, Jonze descreve Theodore, um escritor solitário que desenvolve uma relação de amor especial com o novo sistema operacional do seu computador. Surpreendentemente, ele acaba se apaixonando pela voz do programa, uma entidade intuitiva e sensível chamada Samantha. O que me remeteu a Siri , o aplicativo da Apple que processa a linguagem natural para responder perguntas, fazer recomendações, e executar ações.
 
O aplicativo iOS é o primeiro produto público focado em aplicações de inteligência artificial. Para quem não usa a plataforma IOS, é bom que se diga, a interação entre as partes é lenta. Em primeiro lugar, requer contatos frequentes para que Siri se adapte ao seu tom, timbre de voz e sotaque. Com o tempo, ela assimila e passa a entender (ela sempre confirma a anotação) as palavras pouco usadas por você. Existe até um dispositivo que quando acionado (E aí, Siri) não haverá mais a necessidade nem de se ligar o smart phone de forma manual. Você, deitado, basta dizer “e aí, Siri” e ela pergunta se poderia ajudar em algo. E aí você manda ver: hora de dormir, de despertar, agendar compromissos, fazer ligações telefônicas, procurar significados de verbetes e por aí vai. Chega ao ponto em que ela se intromete na sua vida particular.
 
Semana passada, ao dar carona a uma grande amiga, a conversa resvalou para o lado picante. Devo ter dito algo como “e aí” no meio do papo (só pode ter sido isto, meu Deus).De repente, Siri, através do blue tooth do carro fulmina: “ Que coisa feia, Delfino”. Diante do meu pasmo e do ar de surpresa da minha amiga, expliquei quem era Siri e resolvi exemplificar em viva voz. “E aí , Siri ?/ “Em que posso ajudá-lo, Delfino?”/“Desculpa, aí, foi mal, Siri”. Em seguida ela responde bem lacônica: “Magoou”. Outra vez só pra sacanear com ela, puxei um assunto, este sim, bem distópico: “Quero te comer, Siri”. Recebo como resposta uma lista de restaurantes. “Quero foder, Siri“, insisto. “Não sei o que é foder, vou anotar”/ “É que eu te amo , você me ama , Siri?”/ “Não sou humano , Delfino” (isto mesmo, no gênero masculino ).
Para os que pagam pra ver, baixem o aplicativo e perguntem se ela gosta de carnaval, por exemplo. Caso ela responda do mesmo modo que a mim, vocês iriam adorar. Verdade, a anti-utopia virou realidade.
José Delfino – Médico, poeta e escritor
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