VICENTE SEREJO 1

Não tenho sorte com heróis, Senhor Redator. Errei no golpe de vista. Aqueles pelos quais torci, falharam clamorosamente. E, os que inventei, o diabo lhes roubou a alma. Só tive um rei. Alguém há de dizer que nos primeiros escolhi errado ou, a minha torcida, de tão insignificante, de nada adiantou. Pode ser. E aqueles outros criados por mim não eram de verdade. Quando as grandes lutas se desenharam no céu, e as armas nem trinavam deixando o silêncio de suas bainhas, eles, fracos, já se deixavam abater.

O herói, tal como está nos livros, é fascinante. Talvez tenha nascido ai o erro de admirá-los tão intensamente. São figuras que embora humanas na forma, superam todas as fraquezas e só as grandezas lhe somam em qualidades. Entre o real e o irreal, transitando entre os deuses e os homens. Nunca exigi um herói assim. Nunca. Mas também, confesso com certa frustração, nunca imaginei vê-los tão comuns e tão interesseiros em coisas menores, como se a vida nunca pudesse ir além das pequenas vantagens.

Mas, também sei que os dias findam e o tempo passa. Neles, nas suas horas mortas, vão embora todas as esperanças. Há sempre alguém a por um balcão entre os sonhos e o mundo. Como se tudo fosse mercadejado sem pudor diante da vida. E foi essa cultura feita de espertezas que matou o amor pelos heróis mambembes, esse toma-lá-dá-cá que não sacia a fome. Querem sempre mais e mais, com aquela fome pantagruélica que só a criatividade de um Rabelais, na sua imaginação genial, seria capaz de criar.

Hoje estou convencido que os melhores heróis, os mais lúcidos, são os bêbados quando travam a sua luta com a felicidade. Ela nunca vem, eles sabem, e por isso é preciso inventá-la neles mesmos, no éter que sopra o irreal. Como ser real, apenas real, absolutamente real, se é no plano mágico que todos os heróis de verdade se realizam nesses tempos de falsos heroísmos? Como ser, como não ser, se de um ou outro somos todos iguais? Se as nossas fragilidades nivelam uns aos outros, até as nossas misérias?

Os inimigos dos sonhos não são os poderosos. Eles podem tudo, mas não matam sonhos. São os fracos. Os que se deixam vencer pelo fascínio dos obséquios. Aqueles para quem o azinhavre do nível é de um perfume embriagador. É fácil vê-los assim, no gozo da carne, as ventas acesas, festejando a vida que mercadejam com a sem-cerimônia dos deuses pagãos. E ainda repetem aquela lição antiga que até hoje floresce como se fosse bíblica, venenosa as ervas daninhas da esperteza: Mateus, primeiro os teus.

Sim, o rei. Ele morava na minha rua, e era um rei muito bom e muito pobre. A sua fortuna? Um violino que guardava numa caixa preta com a forma do seu bojo. Alguns domingos, muito raramente, aquele pobre rei lembrava-se do seu reinado encantado e ia buscar o violino. Tirava do estojo onde vivia enrolado numa flanela que usava para lustrar a madeira avermelhada. Depois, puxava de dentro seu arco e começava a tocar suavemente. Feliz, como se um mundo glorioso surgisse ali, entre as bananeiras.

Vicente Serejo – jornalista e escritor

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