DE TENTATIVAS VÃS –

Tudo o que se escreve já foi escrito. Singular só a interpretação de quem lê a partir da forma como se vê o tema de novo exposto. Às vezes a abordagem é dolorosa e pungente e, apesar de pouco ter o que atenue ou suavize a sua intensidade e crueza, comove. Às vezes, de tão suave, beira o poético. Tudo se repete. Esta a magia da escrita e da leitura. O tal do sentimento de invasão que nos apodera misturado ao movimento dos dedos e o passar do cuspe nos indicadores quando se imobilizam as páginas. De tentativas vãs vivemos e elas seguem os seus caminhos. A leitura de livros técnicos é, em princípio, uma barra pesada, pois implica entendimento e memorização. Como o são também as obras literárias ditas seminais.

Tive há muitos anos a ideia de fazer um livro técnico cujo ritmo na distribuição dos capítulos se assemelhasse ao de um romance. Um livro sobre a anestesia peridural. Os amigos riram da ideia. Alguns disseram que era loucura e só poderia tal coisa partir de um maluco com eu. Eu me acompanhei de médicos, jornalistas, poetas, cartunistas, oportunistas (pareceriam ser, pois estes aceitaram o desafio e desistiram durante a caminhada). Até dos pacientes fui atrás. Na minha cabeça deu certo, assim me pareceu. Da dos outros, só restou especulação de minha parte. Vendeu feito bolo de goma, concorreu ao “Jabuti”, dançou, mas não morreu na praia. Até que apareça outro, continuará como referência sobre o assunto. Fora de catálogo está, pois a fase da minha vida atual não implica mais reedições ou versões ampliadas dessas coisas. Pra ser um livro técnico, de sobrevivência sempre efêmera até que está tendo vida longa.

Com quase 20 anos de existência, dia desses vi dois exemplares num sebo virtual, à venda por 15 Reais cada um. Tinha que dar certo. Afinal, contei com a ajuda de pessoas fundamentais e ímpares como o cartunista Edmar e de alguns à época ainda mortais, Vicente Serejo, Iaperi Araújo, Armando Negreiros e Genival Veloso de França. Isto sem falar nos especialistas responsáveis pela elaboração do “hard core” técnico. Como eu, que além de escrever alguns capítulos, tinha que lutar com a neurose de distribuir os capítulos de maneira tal a alcançar o romanesco efeito já referido. Ainda hoje falam da charge que acompanha o final do livro, o anestesista com a mão na bunda da assistente e a legenda em duplo sentido, a brincar : “ É fundamental exibir segurança e convicção”. Fico a imaginar porque as feministas médicas não deram em cima.

O livro embaralha de forma proposital temas técnicos, históricos, lúdicos e os médicos e os pacientes falam, como nos romances. O que falou Serejo, adaptado ao capítulo 27, é impossível esquecer. Irretocável, antológico até, no contexto que eu almejava. “Eu já tinha vivido a experiência de ser submetido a uma anestesia. Mas foi uma história que tinha um enredo simples, feita de tudo que tem um começo, meio e fim … como se a amplidão sugerida pela palavra coubesse, por inteiro, no sentimento de extensão do que é ser levado não só a dormir, mas ter um sono profundo capaz de vencer o medo e a própria dor. A espera, de repente, é o próprio abismo. E quando os olhos se abrem outra vez, há um torpor que dilui o tempo, o real, o irreal e o tangível. Exatos 10 anos após, o gosto amargo de ter que enfrentar de novo uma cirurgia. A ciência é que já não tinha o mesmo limite, a inevitável indicação da anestesia geral, o mundo havia passado a uma possibilidade de anestesia chamada peridural torácica, podendo anestesiar a partir do tórax para baixo e não apenas da cintura”.

“A sensação é de uma picada fina e quase indolor na parte baixa da coluna. Vem então a sensação de uma onda de enorme pressão sobre as costas comprimindo o toráx. Um peso que vai se dissipando, à medida que a respiração parece esvaziar uma represa. A lucidez sem mácula é capaz de perceber uma estranha sensação de abandono. A da perda da parte inferior do corpo. Ao mesmo tempo quando se sente que é possível mexer as pernas, numa ainda mais estranha sensação de deambulação. Os movimentos dos cirurgiões são registrados, como riscos, traços, desenhos, puxões … O pós-operatório é sem dor e nada de doloroso parece se apoderar da carne humana, que passa a viver a dor da alma: os medos. O reencontro com a vida é a descoberta que a cadeira não tem braços, a cama é muito baixa, as escadas não têm corrimão. O bem estar inventa o medo. A diferença entre as duas cirurgias (apendicite e a segunda, – vesícula biliar – dez anos depois é sensivelmente qualitativa. Embora nos dois casos tenha ficado o mesmo sentimento de invasão, como se a alguém tivesse sido concedido a permissão para iluminar a noite da vida, tão misteriosa e tão íntima.”

Ele não terá mais nunca a oportunidade de elaborar um texto desses (reproduzido aqui com cortes , onde o estilo e as inferências foram mantidos intactos), pois os bloqueios regionais hoje são executados sob o efeito de drogas que promovem a devida amnésia sem perda de consciência. Ele, também, não teria a firme convicção (ou teria, pois paciente é bicho complicado e o Sr. Google está sempre alerta) que as drogas hoje são bem mais seguras e a monitorização dos métodos perfeita, a maioria controlada por softwares. Só o domínio das mãos aperfeiçoando a técnica, como quem toca diuturnamente um instrumento, continua o mesmo. Allahu Akba !

José Delfino – Medico, poeta e músico
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