DE RATOS E HOMENS –

Um leve rangido soou quando o bedel abriu a porta. O quarto em penumbra era amplo e aquecido. Nele três celas justapostas. Colado à parede, ao fundo de uma delas, o vi sentado ao chão. Fisicamente prostrado, os olhos fixos e quase mortos como se alguém mirando, vagamente, o infinito duma câmera fotográfica. Como que a meditar. A obscuridade reinante dava a impressão de um corpo sem contorno. Camuflados no escuro, pele, pelos, e mãos, paradoxalmente, pareciam emular uma cansada ansiedade. A improvável e irreal doçura dos viciados em sofrimento. Lembrava o rosto da Mona Lisa com aquele jeito de “ quem quer rir sem conseguir” como expressão.

Ao meu lado o professor, um anglicano ferrenho. Um profissional, também, daqueles afeitos às curvas de Gaus da vida e aos cálculos e mais cálculos matemáticos necessários a se chegar à veracidade, sempre relativa, das descobertas científicas, dentre outras milongas mais que me parecem que só esse tipo de gente sabe o porquê. Acontece ter sido ele indicado meu orientador. Um físico orientando uma tese sobre Medicina? Sim, só que só ao final, já com o título acadêmico obtido, foi que saquei o lance. O lance da visão e da abrangência deles sobre pesquisas puras e aplicadas, por mim até então desconhecida. Talvez o porquê do primeiro mundo ser o que é.

No dia anterior, ao final de uma discussão, aliás um monólogo, sobre quais seriam os materiais e métodos aplicáveis ao meu projeto, eu já exausto, de repente ele diz, poderia me definir o que vem a ser uma síndrome de abstinência? Comecei a verborragia, um tanto tímido fiz o que pude. Afinal, eu estava respondendo a um dos poucos cientistas ainda vivos, que alicerçaram as bases teóricas da moderna Anestesiologia. É o conjunto de sinais e sintomas decorrentes da falta de drogas no organismo.

Mas esses caras não se dão por vencidos de maneira tão simples assim, O que mais ? Uma situação caracterizada por sensações de mal-estar com diferentes graus de sofrimento mental e físico ? O cigarro , por exemplo, faz isto, José, o que mais ? O álcool, também. Bem colocado. A heroína, e seus derivados da mesma maneira, a abstinência deles é tão devastadora ao ponto de por em risco a vida das pessoas, professor .

Chegou onde eu queria! Você já viu alguma crise de abstinência ao vivo ? Não, nunca, é uma cena muito forte, acho que todo médico além de se informar do fenômeno, deveria vê-lo ao vivo. Me procure amanhã aqui na minha sala às 09:13 h (é que eles, além de circunspectos e tímidos por natureza, são ensinados a serem neuróticos assim com horários), para eu lhe dar um presente inesquecível .

Não se aproxime muito nem toque na grades , falou quando o viu partindo pro ataque, você poderia se machucar. O som e a fúria surgiram de forma súbita , avassaladora e ininterrupta. Ao ponto dele ao se arremessar sobre as grades rasgar o rosto e começar a sangrar. Entra em cena o Sr. Gareth Rees, empunhando uma seringa sabe-se lá cheia do quê e exposta de modo bem visível. Ao vê-lo um silêncio sepulcral.

A violência como que por encanto desapareceu e uma docilidade total e mendiga se apoderou do enfermo. Postou-se de frente colado à grade e contornou com os braços e ávido as barras, expondo a mão direita mansamente à punção . A injeção durou uns dois minutos que me pareceram séculos, onde muitas mulheres gritaram, muitos homens gemeram e das crianças se dirá que choraram todas. Tocou de volta, bem calmo para a parede onde anteriormente estava, deitou no chão e pegou no sono aparentemente em paz.

Voltamos em silêncio. O professor empurrou a porta do escritório e ali ficou encostado um instante . Não estendeu o braço direito como sempre fazia ao me convidar a entrar após um educado “ depois de você, por favor”. Apenas me fitou. Nos olhos um sorriso tênue e triste como um sol de outono num curso d´água. Eis até onde vai a miséria de um corpo a caminho da morte e o mínimo que podemos fazer para aprender combatê-la, de maneira às vezes repugnante e torpe, mas necessária , meu amigo. E com suave entonação como que para atenuar o sofisma da ênfase própria dos religiosos, complementou o pensamento, mas perder a fé em Deus, nunca. Bom dia, até amanhã.

Foi quando eu pensei pela primeira vez que a pesquisa médica na sua forma mais brutal e a crença religiosa, de forma análoga, andam juntas, se complementam, ou deveriam, enquanto visões diferentes de uma mesma questão. Pareceria ter sido o depreendido do que ouvi naquele instante. Saí racionalizando meu simplório egoísmo apegado àquele exclusivismo atávico , àquele amor excessivo a mim mesmo. Inda bem, era um macaco, pensei. Cego à verdade de na escala biológica , eu também ser um deles , embora Sapiens . Questão só de evolução. De acaso e sorte. De seleção natural e sexual como anunciou Darwin.

 

José Delfino – Médico, músico e poeta.

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