jose-delfino
DE INTERAÇÃO NA INTERNET –
 
Tenho meus hobbies , literatura policial , Shakespeare , Woody Allen , Chico Buarque , Borges , cinema , violão clássico , escrever , fazer poemas , beber , fumar , ser glutão , e conversar sacanagem com os amigos . Se tivesse que ir para uma ilha deserta , ou pro outro mundo ( se é que ele existe , mesmo ) me contentaria em levar um kit sobrevivência igual ou parecido. Tenho minhas idiossincrasias , também , e procuro cultivar virtudes como o reconhecimento , a sinceridade e a tolerância . Bem como , longe de ser virtude , interagir na rede cibernética : eis o problema. 

Já faz um certo tempo , levamos um papo eu e um primo meu do Ceará , até então , desconhecido. 

– “Pelo seu perfil , descobri que somos primos legítimos . Você é filho do meu tio Esaú e eu sou filho da sua tia Julita . Se estiver enganado , desculpe o transtorno” .
– “Corretíssimo , primo . E você é a cara do meu irmão Esaú Magalhães . Alegria em lhe conhecer. Com a morte de papai e seus irmãos perdemos o contato . Gostaria de mantê-lo”.
– “Receba algumas fotos de nossos ancestrais . Cópias de daguerreótipos do século XIX. Acredito que você teria interesse em arquivar”.
– “Na verdade , primo , tenho os originais dessas fotos , da primeira e da terceira , que são os nossos bisavós: Cel. José Barbosa Magalhães e Francisca Cordeiro de Magalhães , que eram primos . Essa foto do meio eu não tinha , ainda , mas tenho uma outra bem parecida e é também do nosso bisavô em outra fase da vida”.
– Minha mãe falava que morou em Caxias com tio Esaú e participou ativamente da infância de vocês , a quem muito amava . Inclusive , me disse que meu nome era uma lembrança de um outro irmão seu , ela apenas inverteu a ordem dos dois primeiros nomes . 
– “Vi que você é um leitor compulsivo , como eu . Escrevi um livro intitulado “Viagem pela história do Canindé” . Nele tem um capítulo “A família Barbosa Cordeiro” onde conto a origem dos nossos avoengos , desde o século XVI em Portugal , até o nosso trisavô . Gostaria que me mandasse um endereço em que eu possa lhe enviar um exemplar”.
– “Receba o endereço , primo …”
– “Ok, o seu nome completo seria José Delfino Magalhães ?”
– “José Delfino da Silva Neto . Fui penalizado em família . Entretanto , muitos aqui em Natal me chamam Zedelfino Magalhães . Meno male” .
– “Entendi . Homenagem ao avô materno. Envio o exemplar ainda hoje . Abraço”.
Recebi um convite de amizade dele , logo após. Confirmei , em seguida .
Uns dez minutos depois , compartilhamos nova conversa no Messenger , já com direito de minha parte ( achei ) de uma certa liberdade de “novo” primo . Começou ele . – “Olá boa noite , como você foi rápido” .
– “Velho tem ejaculação precoce , sabia ? Saindo pro cinema. Depois a gente se fala . Fui” .
– “Mas até que você é um velho charmoso . E bastante interessante” .
– “O mulherio diz isso , ainda , primo” .
– “E estão certíssimas” .
– Ciao , primo , tô um pouquinho atrasado” .
– “Que filme vais assistir ? Tô precisando me atualizar” .
– “O mais novo de Woody Allen” .
– “Adoro Woody Allen . Vou ver se amanhã terei disposição em ir” .
Me perguntei , surpreso: mas já está passando o filme novo de Woody Allen em Canindé ? No interior do Ceará ? Meu pensamento voltou rápido pra Natal .
– “Amanhã é o dia dos mortos . Fique em casa” .
– “Eu , não . Vai ter a caça do “The walking dead”.
– Hoje é que é o nosso dia , cara : o de todos os “santos”.
– “Pois é , estou querendo sair hoje , conversar , tomar uma cervejinha , namorar gostoso , amanhã é feriado , dia de dormir até tarde . Você vai com quem para o cinema ?”. 
– “Com minha mulher . Coisa de viúvo e carne nova , sabe ? ”.
– “Achei que fosse solteiro” .
Foi a esta altura que começou a cair a ficha .
– “Não , não . Tenho três filhos e seis netos. Na guerra , ainda . Fui. “
– “Pena , ia te chamar pra sair. Queria companhia . Bom filme” .
– “Que coincidência , cara , o mesmo nome . Pensei que você seria um primo que mora no Canindé . Só atentei pra sua foto agora . Desculpa aí” .
– “Sem problema . Valha-me Deus , foi ruim ? Tudo bem. Não quero atrapalhar . Desculpe o incômodo”. 
– “Tudo bem , cara” .

Já aconteceu muito coisa comigo. Entretanto , essa de bater de frente com a homofonia , num papo jocoso e de involuntário duplo sentido , foi a primeira vez . Rimos muito , Ana e eu . Como exclamaria um evangélico ortodoxo : “Misericórdia!”. E Bertold Brecht : “tenho muito o que fazer, preparo o meu próximo erro” .
 
José DelfinoMédico. Musico e Poeta
 

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