DE CARONA NO COVID IV –
Acordei, como sempre, retardado. Ávido em ler notícias de, pelo menos, uns três dias atrás. Convencido que a visão linear das coisas, como resultado direto da racionalidade, pode até chegar próxima da verdade. E fiquei pensando como as coisas acontecem um tanto ao azar. Na dependência dos acasos, dos sonhos dos “insights”.
Querem provas do que eu digo? Ora, logo de mim que adoro ficar vendo esse rebuliço, consoante as circunstâncias, como quem vê um seriado televisivo e gosta de cometer poemas em momentos, às vezes, não tão felizes assim? Pois bem, muitas descobertas dos seres humanos acontecem sem que eles tenham a menor ideia do que estaria por vir. Como o “Eureka” do Arquimedes, trezentos anos antes de Cristo, após o transbordamento d´água proporcional ao volume do seu corpo ao entrar na banheira. Daí, para a teoria do empuxo foi um pulo. Ou o sonho do Kekulé, quando disse: “No meu sonho, os átomos estavam saltando diante dos meus olhos. Os grupos menores mantinham-se ao fundo formando fileiras longas, todas juntas, emparelhadas e entrelaçadas em movimento como de uma cobra… Uma das cobras havia agarrado a sua própria cauda e essa forma girava.”
Soa até um tanto surreal a concepção da fórmula molecular do Benzeno ter começado assim. Ou o som da queda da maçã ouvida por Newton numa noite de lua cheia que lhe deu o “insight” segundo o qual a força de atração seria a mesma que mantinha a lua e os planetas em órbita diretamente proporcional às suas massas e indiretamente proporcional ao quadrado da distância.
Mais ainda, o vapor que viu Daguerre, proveniente de um termômetro quebrado acidentalmente em um armário, atuar como revelador ao entrar em contato com uma chapa revestida com iodeto de prata, revelando misteriosas formas difusas. Estava descoberta a fotografia. Manter a mente aberta é o segredo, o traço comum àqueles que ensejam contar com a sorte grande, como disse o físico Henry em 1842: “As sementes da descoberta flutuam constantemente em nossa volta , mas só criam raízes nas mentes preparadas para recebê-las”. Pasteur, bafejado várias vezes pela serendipidade, disse algo parecido, após: “… no campo da observação, o acaso favorece apenas aos espíritos bem preparados”. Na verdade , novidade nenhuma, cheiro de cópia, isto sim, pois na bíblia, encontra-se algo similar na parábola do semeador “somente cresce a semente que cai em solo fértil ..” (Mc 4.1-9; Lc 8.4-8).
Inferência parcial, o ser humano é mais vivo do que se pensa. Toda essa verborreia me veio à cabeça por conta do meu tal “retardo” ao ler jornal do dia anterior e ter descoberto durante minha vida universitária que o progresso científico é comumente considerado como resultante de pesquisa rigorosa e de análise multifatorial consistente. Entretanto, não se pode excluir que eventualmente a “surpresa acidental” e o ”acaso feliz” aconteçam. O que de fato ocorreu no Reino Unido, segundo nota recente vazada na imprensa mundial. A Universidade de Oxford anunciou, nesta segunda-feira (23), que a vacina contra a Covid-19, em desenvolvimento em parceria com o laboratório Astra-Zeneca, revelou eficácia de 90% quando administrada com meia dose seguida de uma dose inteira, em contrapartida ao uso concomitante de duas doses inteiras, que exibiu uma eficácia de apenas 62%. A eficácia de doses concomitantemente diferentes já havia sido comprovada em porcos , mas não constava do atual protocolo de pesquisa em humanos.
Embora acidentes na pesquisa em seres humanos sejam lamentáveis, alguns acontecem e, às vezes, podem levar a avanços espetaculares, a tratamentos heróicos, ou até ao Prêmio Nobel. Descobertas científicas são feitas por acasos felizes: o acaso e o caos se intrometem a todo momento e podem alterar as condições experimentais para melhor ou para pior, já que o achado final não se busca diretamente. Talvez seja este o caso.
Na verdade a gente vive em movimentos assemelhados de vai-e-vem, de ir e vir. Em certos casos, um pouco de álcool antes e um cigarro após, não faz mal.
José Delfino – Médico, poeta e músico
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