DE CARONA NO CORONA II –

Quem gosta de viver socorre-se em fatos. Anota aí: a vida pareceria estar dentro de nós inserida não só naquilo em que se crê. Também na sua maquiagem. Aquilo com que a gente se pinta, se cobre, se veste, faz de conta e aparenta. Atitude bem racional, pois pareceria ser só o que se nota; só o que se vê nas pessoas.

Pelo que assunto desses tempos de isolamento e epidemia, cheguei à inescapável conclusão que todo o mundo, na falta de coisa melhor a fazer, bebe. O ato de comer, um mero ( não confundir com o peixe) tira-gosto. Mas esqueçam questões semânticas ou gramaticais.

Pelo que dizem, embebedar-se parece estar a tomar (“ tomar”,de novo o problema linguístico) proporções bíblicas. Nada de causar espanto. O cristianismo fez do álcool o elemento sine qua non dos seus mistérios. Ao adorar um Deus feito homem proclamando ser o vinho o seu sangue (o dele), bebê-lo seria, por conclusão e portanto, algo sagrado. E a extrapolação nesses tempos pós modernos para uma infinidade de fermentados e/ou destilados, um minúsculo passo.

A diferença entre os poderes aquisitivos dos pecadores dá margem a isso. Eu, que bebo moderadamente às refeições não fujo à regra dessa bengala, ou encosto, como queiram. Mas o diabo é que estão nos imperativos do Cristo, filho do Criador e seus apóstolos, certas máximas impregnadas no inconsciente coletivo dos fiéis.

A partir do “Depois tomou o cálice, deu-o aos seus discípulos dizendo: Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu Sangue, o sangue da nova e eterna Aliança, que será… Até o convidativo apelo de São Paulo (Eclesiastes 9:7) que diz mais ou menos assim: “… e alegremente bebe o teu vinho, desde que a tua conduta agrade a Deus”. E o cara não parou por aí, na Epístola a Timóteo ele o aconselha a não beber mais água, e experimentar beber vinho.

Misturar simbologia com realidade me agrada à beça. Me deleito com a transformação da água em vinho e o milagre dos peixes. Fico a pensar no porre dos convidados da boda de Canaã. Os comensais, bêbados, vendo água não potável ser transformada em cabernets da vida. E depois, a esticada até a casa do primo Lázaro com suas, prováveis, previsíveis e etílicas, consequências. Bem como com as bebedeiras de Noé. Afinal ele, um cara afeito a tanta água mereceria o nosso devido respeito e respaldo.

E viva o inebriamento, o êxtase da embriaguez ritual inconsciente ou não. Sem trauma algum fico a me lembrar de João quando dizem que ele disse “Ah ! Não façam mal ao vinho”, procurei a devida referência e não a encontrei, deve ser notícia fake, pois. Mas a vinha, (já notaram?), é algumas vezes simbolicamente referida como o reino de Deus. E o vinho sua mensagem.

Ganhamos coisas com ou sem nossa intenção. Por descuido, erro, destino, preguiça, paixão ou por aquelas vindas do prazer cego da natureza. Sim, e também por herança. Assim, recorte, depois recorde, e pense: o norte da esperança é manter o disfarce até a morte. Afinal, a nossa vida nesses novos tempos, será como um litro aberto, sempre restando uma marca a zerar.

Que a nossa bebedeira diuturna e epidêmica justifique a intenção de nos convencer que nessas horas de isolamento medo e tédio somos simples mortais. Uns idiotas desprotegidos, mesmo. E que o resto é conversa pra boi dormir.

 

 

José Delfino – Médico, poeta e músico
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