DE ARTE DO OFÍCIO –
Certa vez me disse um grande amigo meu, Dr. Genival Veloso de França, que a medicina outrora foi revestida de veneração quase divina e hoje causa muita contestação. Pura verdade porque praticá-la atualmente é bem diferente do que antigamente. Talvez, por conta da constante reviravolta científica e tecnológica, cada vez mais rápida; quem sabe, pelas mudanças dos padrões morais e éticos da sociedade; ou porque os gestores dos planos de saúde, praticando um capitalismo às avessas, priorizam o coletivo em detrimento do espírito humanitário individual. Não importa, essas realidades fizeram desabar a forma clássica, artesanal e individualista do trabalho médico e desencadearam a era do risco, fazendo com que o exercício da profissão se torne, cada vez mais, complexo .
 
Nesse contexto, o erro médico passa a ser mais cogitado e os pacientes, cada vez mais preocupados com os seu direitos, a contestar e a exigir reparos. A prática médica girou sobre si mesma e inverteu a situação. Para pior ou para melhor, como queiram. Mas algo é inegável, passamos a viver a era do relacionamento litigioso. Expostos, cada vez mais à opinião pública e julgados muitas vezes pela força das versões que chegam aos veículos de comunicação, os médicos pagam um preço elevado. Não importam as precárias condições de trabalho que muitas vezes lhe são oferecidas; não interessa a vulnerabilidade da situação definida como estar doente . A responsabilidade médica é intransferível.
 
Vivo constantemente tentando me adequar ao status quo procurando substituir lacunas da deontologia clássica por atitudes compatíveis à nova realidade, nem sempre bem ajustadas à minha consciência e persuasão. Acho, por exemplo, que a nós não deveria ser imputada a maior parcela de responsabilidade, na medida em que as mudanças de comportamento surgiram da própria sociedade, como consequência da modernização de meios e pensamentos. Sempre surgem alguns que, como em qualquer outro ofício, comprometem a credibilidade do exercício profissional ao praticar infidelidade de princípios. Infidelidade num sentido amplo, da falta de mais diálogo, mais atenção, mais carinho, caridade e compreensão.
 
Um médico como eu, que já foi paciente várias vezes, sabe muito bem a falta que isto faz. Antes, prevalecia o conceito da ampla liberdade profissional de agir e se superestimava o diploma médico ao encará-lo como evidência absoluta de idoneidade e competência. A medicina era encarada como uma ciência exata que não variava ao sabor da técnicas, dos métodos e das circunstâncias clínicas. Ainda bem que não é mais assim, mas está a faltar compreensão recíproca, saber medir características, formar opinião, inferir atributos. O que me remete ao restante do raciocínio de Genival. A medicina vivendo tanto progresso, não pode evitar o risco, pois vivemos a era do risco. O acidente médico passou a ser cogitado, esperado e muitas vezes, inevitável. Na busca de salvar mais, a medicina hoje nada mais é do que uma sucessão de riscos. A medicina antiga era incapaz de grandes feitos, gerava menos riscos e menos possibilidades de danos. Mas era uma arte íntima, solitária, espiritual . Cá pra nós, sou acometido de uma desconfiança visceral ao me deparar com profissionais, de qualquer área, muito frios, tranquilos demais, sem emoção. Não me agrada. Resta a sensação de pairar no ar um quê de simulação.
José Delfino – Médico, poeta e escritor
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