DE APRENDIZADO E POLIMENTO –
O tempo parado. Bastante frio na rua. A neve já começava a cair sem pudor. E eu, sem nada saber, na sessão das 22:00h do cine-clube “Chapter”, vendo pela primeira vez na vida, um filme de John Carpenter. De repente , desaparece o som do filme e ouve-se um lacônico aviso na tela: “Nevasca se aproximando”. Simples assim. E só. A imensa maioria debandou. Eu, sem a mínima noção prática do fenômeno, por conta de alguns gatos pingados suicidas, continuei na sala de projeção. Difícil foi, obra de meia noite, encontrar o carro no estacionamento. No lugar do Ford Escort, um iglu. Parecia um gigante e gelado convexo cuscuz de arroz. Eu não sabia, ainda, que gelo só se desprega de carro com o motor ligado e com muita água, quase fervendo. Calculem o trabalho pra conseguir, com as mãos geladas e sem luvas deixar o carrão em condição sofrível para volta à casa. E mais, dirigindo com a cabeça fora da janela pra conseguir ver em frente.
 
No meio do caminho na cidade fantasma , um sinal vermelho lerdo e insistente e um outro carro esperando pacientemente o verde chegar. Chegando em casa, estacionei na garagem e fui participar da magia de ver através da imensa janela de vidro da sala a neve caindo pela primeira vez nas nossas existências. De manhã saímos para fazer bonecos de neve com as crianças. Foi quando me deparei com o vizinho da esquerda, um policial que já havia me dado de presente uma imensa tesoura de podar jardim, sem maiores explicações. Sorrisos forçados, eu e ele sabíamos muito bem a razão do mimo. Empunhando uma vassoura em cuja ponta distal estava acoplado um grande retângulo de papelão, retirava ele a neve acumulada na noite anterior, apenas no caminho que ia até a sua garagem. Pensei: que imbecil! Imbecil, coisa nenhuma, fiquei foi dois dias sem sair de carango por conta do gelo escorregadio que se formou do portão até a minha garagem.
 
25 de Dezembro, não sabia que era o Natal deles, o dia da troca de presentes. Sem “Veja”, “ Diário de Natal ”, Tribuna do Norte”, atormentado pelos cartões que Arruda Fialho me enviava dizendo “em Pirangi os cajueiros estão florindo , Zedelfino”; e pelas cartas de Alex Nascimento me acalmando com um “esteja feliz, maluco, por aqui só existem árvores de Natal com neve de algodão mocó”, o sufoco era grande; inconformado , também , pois por conta do tempo inclemente, ligações telefônicas pro Brasil eram quase impossíveis. Foi quando a campainha tocou ao meio dia e pensei, “só tá faltando Papai Noel”. E era. De paletó e gravata, mais arrumado do que quando eu vou para festa de quinze anos ou casamento à força, com um bom dia e um sorriso cativante ele dizia, “presente para as crianças”. Foi uma festa. Não aceitou o convite pra entrar. Depois descobri que era Mr. Walter, o vizinho da esquina. A partir daí passamos a nos cumprimentar com um ligeiro curvar de cabeça com o ínclito respeito e a nímia consideração que a “noblesse oblige”.
 
A lua de mel durou pouco. Não sabia que no inverno há a necessidade do uso de soluções “anti-freezing” nos radiadores dos carros e de uma bateria nova. Necessitado de alguém que me ajudasse a empurrar o veículo, me aparece a (aparente )salvação. Mr. Walter, que entra no carro e diz o óbvio: “Bateria”. Instado a me ajudar a empurrar o carro ele diz “sinto muito, estou indo ao emprego”. O “tomar no cu” ficou engasgado na garganta. No outro Natal, na mesma hora, com os mesmos presentes, a história do Papai Noel se repetiu. Desta vez, “Father Christmas” entrou. Educadamente, despiu as luvas e esfregando as mãos elogiou o calor da lareira antiga movida a tronco de madeiras e carvão de pedra. Recusou a Murim mirim (presente de “Vem-Vem” e seus asseclas que numa tarde, dando uma rolé, na nossa casa aportaram). “Um Chá?” Com leite, por favor”. E tirou o time. Perto de voltar pro Brasil, recebo um telefonema dele às 10:00h de um belo sábado de sol, coisa rara por lá. Como descobriu o número, ignoro. O fato é que nos convidou para um “happy hour” às 15:32h. Uns minutinhos de atraso fez o telefone tocar novamente: “Vocês viriam?”. “Claro que sim, sorry”. O cara era professor de Letras da Universidade. Sabia quase tudo de mim. Eu, dele, nada.
 
De volta ao Brasil mandei um postal e um cartão de Natal. Há 35 anos espero a confirmação de recebimento. Educados e tímidos na sua maioria. Mal educados, alguns. Polimento superficial, apenas pra não perder a linha. O inglês é assim. Vai morrer assim. Entretanto , aprendi com eles a ser Descartes. E lembrar que não adiantaria chegar ao Departamento de Anestesiologia antes das nove ou após cinco da tarde; e ouvir concertos na igreja do hospital das 12:00 às 14:00h duas vezes por semana, deixam um quê de saudade. De volta, o nosso polimento também durou pouco. Lembro muito de Fabio Dore no cais da Tavares de Lira com quatro anos de idade um picolé na mão e o invólucro na outra, calado, como que esperando a tia dizer onde ficava o “dust bin”, ouvir sem um pio e com os olhos arregalados: “Deixa de frescura, menino. Joga no chão”. Pois é, somos assim, também. Fazer o que ?
José Delfino – Médico, músico e poeta.
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *