DE AMOR AO CINEMA –
Comecei ficar vidrado em cinema quando, por volta dos 6 anos de idade, tia Denise, solteirona até hoje, me levou ao cine Rex em Caxias , no interior do Maranhão, nas proximidades das barrancas do rio Itapecuru. Ali, duas vezes por semana, aprendi a gostar de Carlitos, Tom Mix e Gene Autry ( só não gostava quando Gene Autry cismava de cantar , sem razão nenhuma, aqueles countries bregas se acompanhando ao violão, montado em seu cavalo). Eu me ligava, mesmo, era em Hopalong Cassidy e seu cavalo branco quando cavalgavam em alta velocidade entre inúmeros disparos de revólveres (uma cena em “fast forward” análoga a que conseguimos hoje apertando controles remotos e deslizando mouses nesses tempos de tecnologia avançada).
 
Tinha um outro cinema, o cine Glória , perto da praça da matriz, onde seu Manoel, o projecionista, me adotou. Talvez por ser o neto do cara mais rico da região. Via os filmes, às vezes, do alto da salinha de projeção. Foi ele quem me ensinou a colocar os rolos dos filmes na máquina. Foi lá que aprendi a colar com acetona os celuloides avariados por combustão espontânea, ou quando cortados por censura, ou quando ele resolvia me presentear com uma amostra de dois ou três negativos, ou quando a fita quebrava mesmo no meio do filme. Quando vi “ Cinema Paradiso “ pela primeira vez, tudo aquilo voltou de uma maneira avassaladora.
 
Já li tanto a respeito, ao longo dos anos, sobre sétima arte, que cheguei a conclusão que teoria e crítica cinematográficas sobrevivem apenas como estratégia metodológica. O que interessa mesmo é o efeito conjunto que os filmes causam às pessoas. Não interessa muito se é um fã ingênuo que o vê por diversão ou um espectador mais maduro que o encara como uma das respostas aos seus anseios existenciais (talvez o meu caso, não decidi ainda). O fato é que o ato concreto da visão é o que importa e a lembrança que se reproduzirá nostálgica ao longo dos anos.
 
E foi assim que comecei a colecionar na mente minhas inúmeras imagens amadas: Carlitos comendo os cadarços da bota como se fossem macarrão no polo ártico em “Em busca do Ouro”; o ar vindo de uma galeria subterrânea de metrô levantando a saia de Marilyn Monroe, em “ O pecado mora ao lado”; a ceia larga dos mendigos em “Viridiana”; a bola de cristal que cai das mão do moribundo Kane, enquanto balbucia  “Rosebud”; a mãe de rosto ensanguentado que acolhe o filho morto no “ O Encouraçado Potemki; o cego que contorce o corpo todo ao tocar o acordeão quando passou a festa de casamento, ao final de “Amarcord”. Sim, e a cena antológica (que não é lá nem essas cenas todas) mas que sempre a mim retorna num paroxismo besta, a dos meninos batendo punheta no interior do carro .
 
Em todas essas décadas sempre e invariavelmente me aconteceram surpresas agradáveis procuradas, direcionadas ou ao acaso. A mais recente neste meu carnaval 2017 em casa lendo e estudando violão, foi “Pora Umierac” ( “Hora de morrer” , filme polonês rodado em 2007). Mais ou menos assim, Aniela, uma enérgica e inflexível relíquia do passado e sua dacha entre as árvores onde vive sozinha com sua cadela (que parece mais gente do que a gente). Todos querem a casa e o terreno de Aniela. Quando o vizinho traça planos para obter a propriedade da casa, Aniela encontra uma maneira de ser mais esperta que ele. Belíssimo filme (o recente filme nacional “Aquarius” o evoca de uma certa forma, mas não chega nem no rastro).
 
Uma direção primorosa, um preto e branco estonteante e uma personagem encantadora. A diretora Dorota Kedzierzawaska transpõe toda a carga emocional de uma mulher nos seus últimos dias de vida, suas últimas lembranças, suas últimas decisões, suas últimas decepções. Um recorte do ciclo da vida que nunca cessa. O momento entre a despedida e a continuidade. “Hora de morrer” é belo, poético, reflexivo e emocionante. E de quebra , a atriz principal , Danuta Szaflarska, rouba a cena. A cadela , Filadélfia, mereceria um Oscar desses da vida como atriz coadjuvante. Só não descobri, ainda, a cena que ficaria na minha lembrança. Talvez o olhar da cadela ao longo do enredo da peça. O tempo dirá. Outros filmes virão. E assim La Nave Va.
José Delfino – Médico, poeta e escritor
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