DA REVOLUÇÃO ANIMAL –

Foi Thomas Kuhn (1922-1996), no seu “A estrutura das revoluções científicas” (“The Structure of Scientific Revolutions”, 1962), que nos mostrou ser a ciência um fenômeno dinâmico, em latente construção cultural. Ela não é dotada de verdades objetivas universais. É certo que, na “ciência normal”, assim chamados os períodos de normalidade, o paradigma, expresso numa teoria amplamente aceita, serve satisfatoriamente aos cientistas na resolução dos seus diversos problemas. Mas, vez por outra, vem a crise, na qual o velho paradigma já não consegue responder a algumas questões. Cai-se num período de “ciência extraordinária”, em que paradigmas provisoriamente competem entre si. E vem finalmente a ruptura. A história do progresso científico é claramente marcada por essas rupturas ou revoluções paradigmáticas. A de Copérnico, a de Darwin, a de Freud, apenas para ficar em três das mais famosas. São as revoluções científicas, em que novos paradigmas substituem os antigos. E, a cada revolução, um novo ciclo semelhante se inicia.

Penso que o mesmo se dá com a ética. E com mais razão até. Os fundamentos da ética são, em última análise, culturais e sociais. A ética não se funda numa observação neutra dos dados. Pelo contrário. Pré-compreensões e preconceitos estão por detrás de qualquer discurso ético minimamente articulado. E visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas – em determinada sociedade, em determinado período de tempo e em certo contexto – fazem toda a diferença. Mas revoluções também se dão aqui. Paradigmas nascem, vivem e morrem, sendo substituídos por congêneres novos e supostamente melhores.

Fiz toda essa introdução apenas para tratar de um tema de ética prática que me é muito caro: a nossa conduta em relação aos animais não humanos.

Penso que nessa questão estamos vivendo – e acho, sinceramente, que devemos levá-la a cabo – uma nova revolução paradigmática. Aquela revolução tanto ansiada pelo grande Jeremy Bentham (1748-1832), quando, lá em 1789, em “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação” (“An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”), afirmou: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim: que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”.

Não me tomem aqui como um radical no tema. Nem como dono de conclusões definitivas.

Por exemplo, não sou, nem por óbvio exijo que alguém seja, vegetariano. Aliás, nem mesmo o filósofo Peter Singer (1946-), o autor de “Liberação animal” (“Animal Liberation”, 1975) e de “Ética prática” (“Practical Ethics”, 1979), considerado o fundador dos “direitos dos animais”, embora ele mesmo vegetariano, exige que sempre se evite comer a carne de animais; ele quer, sim, com toda razão, que evitemos consumir produtos – quaisquer produtos – que advieram do sofrimento destes (dos animais não humanos). E não sou eu quem vai debater aqui a natureza carnívora do ser humano nem a alegada necessidade da proteína animal na nossa dieta. No mínimo, estamos aqui em meio a uma “ciência extraordinária”.

E, assim como Singer, admito experimentos científicos, desde que razoáveis e justificáveis, tanto em animais humanos como em não humanos. Sem especismo. Trocando em miúdos, defendo o “teste utilitarista não especista” de Singer, entendendo um experimento desse jaez como justificado se, e somente se, (i) de todas as alternativas possíveis, o experimento gera mais benefício que dor ou custo, no cômputo geral, para todos os afetados, (ii) e a justificação para esse experimento não estiver condicionada a um preconceito irrelevante de espécie (o tal especismo). Talvez aqui fale mais forte a minha simpatia pelo utilitarismo de filósofos como Jeremy Bentham, John Stuart Mill (1806-1873) e o próprio Peter Singer.

Mas acredito, sim, que nós estamos hoje dando conta da senciência dos animais que, embora não tenham uma mente e uma racionalidade igual à humana, não são assim tão diferentes (de nós, humanos) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento.

Acredito ser obrigação dos homens de boa fé levarem a cabo essa revolução paradigmática. Fazerem valer a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO no ano de 1978, que reza, entre outras coisas: “Todos os animais têm o mesmo direito à vida; todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei; e o homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais”. Acredito em Arthur Schopenhauer (1788-1860) quando, em “Sobre o Fundamento da Moral” (1840), afirma: “A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”.

Não sei o que vocês acham. Mas, por aqui, Capote está latindo que Bentham, Mill, Schopenhauer, Singer e eu temos toda razão. Segundo ele, graças a Deus.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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