AS SÚMULAS E O TEMPO –

Pelo que escrevo aqui, todos já sabem que sou entusiasta – e razoavelmente estudioso – da teoria dos precedentes judiciais. Nos meus estudos sobre a matéria, por esses dias andei analisando a importante relação entre as súmulas (e os seus enunciados, claro), especialmente a súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal, prevista no art. 103-A da nossa Constituição e regulamentada pela Lei 11.417/06, e o tempo.

Para quem não sabe, quanto à eficácia temporal, o art. 103-A da Constituição Federal e o art. 2º da Lei 11.417/06 são expressos ao aduzir que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, a súmula terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual, distrital e municipal. E essa eficácia, em regra, retroage no tempo, ou seja, é “ex tunc”, preservando, é claro, salvo ação rescisória, a coisa julgada.

Todavia, sabiamente, dispôs o art. 4º da Lei 11.417/06 que “a súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o STF, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”.

Caminho semelhante, e ainda de forma mais generalizada, traçou o novo Código de Processo Civil, no seu art. 927, ao disciplinar: “§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”; “§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.

Trata-se de uma questão de imensa relevância, já que o reconhecimento da existência de efeitos retroativos, na aprovação de um novo enunciado da súmula (vinculante ou não), implica, pelo menos potencialmente, afetar, de um modo ou de outro, fatos e atos jurídicos já realizados sob a égide de outra orientação jurisprudencial.

Pode-se dizer que, apesar de ser regra a aplicação retroativa, fica estabelecido, como critério principal para nortear a aplicação retroativa ou não do novo enunciado e em que termos isso se dará, o fim almejado pela regra contida nele e qual tipo de aplicação ficará mais próxima do que se entende por correção e justiça. Mas esse critério tem de ser sopesado com outros fatores, como o grau de confiança que o Estado e os cidadãos depositaram na orientação jurisprudencial até então corrente e a carga imposta à Administração da Justiça na hipótese de se darem efeitos retroativos ao novo enunciado.

Doutra banda, mas ainda no que toca às súmulas e ao tempo, o § 2º do art. 103-A e os arts. 1º e 2º, § 3º, da Lei 11.417/06 preveem a possibilidade de revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante, que se torne, por algum motivo, incompatível com o Direito. O próprio STF, de ofício, por proposta de um ou mais de um de seus ministros, poderá proceder à revisão ou ao cancelamento da súmula. Prevendo a provocação externa, o mesmo § 2° do art. 103-A já dispôs que, sem prejuízo do que for estabelecido em lei, a revisão ou o cancelamento de súmula poderá ser provocado por aqueles que gozam da prerrogativa de propor a ação direta de inconstitucionalidade e que atuam como legítimos representantes da sociedade.

E mais: a Lei 11.417/06, no seu art. 5º, cuidou da hipótese de revogação legal de enunciado vinculante, que deve levar ao cancelamento ou revisão deste, inclusive prescrevendo como o STF fará isso de ofício, para o caso de os legitimados externos não fazerem a provocação: “Revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso”. E caso esse dispositivo não seja devidamente aplicado, podemos nos deparar com a situação teratológica de haver um enunciado de súmula não cancelado ou revisado, portanto vinculante por imposição constitucional, e uma lei, com disposições incompatíveis entre si.

Na verdade, no nosso sistema jurídico, a validade de um enunciado de súmula está condicionada ao amparo que ele tem na norma legislada. Ele é um enunciado interpretativo de um princípio ou de um comando normativo que já existia (ou deveria existir).

Assim, um enunciado de súmula (vinculante ou não) terá sua estabilidade condicionada à estabilidade do princípio subjacente à norma legislada que visa interpretar. Em regra, um enunciado não deve sobreviver se alterado o texto da norma legislada a que ele se refere (ou criada uma norma, para o caso da ausência anterior), de modo a tornar incompatíveis o enunciado e o novo texto de lei. Entretanto, é claro que, embora alterado o texto da norma legal ou criada uma onde não existia, pode o enunciado sobreviver se a alteração em nada afetar o princípio subjacente em relação ao qual ele está de acordo.

Bom, seria mesmo absurdo pensar diferente: por exemplo, que a elaboração das leis, “a priori”, teria para sempre de se conformar com os enunciados da súmula vinculante do STF. Seria entender que se criou uma supremacia do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo, o que, me desculpem os ativistas do Ministério Público e do Judiciário, não é – nem deve ser – verdade.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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