AS DOZE TÁBUAS –

Já escrevi aqui – em textos como “O mais antigo código”, “O Código de Hamurábi”, “O legislador de Deus”, “As leis de Drácon”, “As leis de Sólon”, “O legislador espartano”, “O grande codificador” e por aí vai – sobre alguns monumentos legislativos da Antiguidade. Hoje, aproveitando a ocasião de haver comprado um livrinho deveras interessante sobre a história do direito – “Que sais-je? Les 100 dates du droit”, de Jean-Marie Carbasse, editora PUF, 2015 –, vou tratar de mais uma dessas grandes legislações: “A Lei das Doze Tábuas” (451-450 a.C.), produzida, como sabemos, pelos antigos romanos.

Antes de mais nada, a “Lei das Doze Tábuas” é o primeiro e talvez o mais importante dos monumentos jurídicos de Roma (e olhem que não foram poucas as grandes realizações legislativas do direito romano). Elas (refiro-me, já no plural, às tais “Doze Tábuas”) constituem o fundamento do direito civil romano (aqui no sentido de direito reservado aos seus cidadãos) e foram, até o fim do grande Império, objeto de constante veneração pública. Até reza a lenda haver Cícero (106-46 a.C.) afirmado que, em Roma, as crianças eram obrigadas a decorar as “Doze Tábuas”, para que, desde muito cedo, tivessem conhecimento das leis e da Constituição do seu país.

À semelhança de outras civilizações da Antiguidade, a formação do direito romano teve início com a tradição oral de costumes passados de geração a geração. Entretanto, conflitos entre patrícios e plebeus forjaram a necessidade da elaboração de um documento escrito que evitasse – ou, pelo menos, minimizasse – a arbitrariedade na interpretação e aplicação da lei. Como explica o autor de “Que sais-je? Les 100 dates du droit”, Jean-Marie Carbasse, segundo a tradição, a redação da “Lei das Doze Tábuas” foi o resultado “de uma campanha política manejada a partir de 462 a.C. por um tribuno da plebe para obter dos patrícios que os limites do poder político dos cônsules romanos fossem fixados por lei e que, por consequência, os direitos de todos os cidadãos, plebeus incluídos, fossem conhecidos e garantidos”. Após alguns anos de resistência, os patrícios cederam e, em 454 a.C., aceitaram a criação de um colégio de juristas notáveis, os “Dez Homens”, encarregados de redigir a tal lei. E, segundo o autor citado, “as primeiras dez tábuas foram redigidas em 451 a.C., as duas outras no ano ano seguinte”. A legislação gravada em doze tábuas – de madeira ou de bronze, os historiadores ainda discutem – foi afixada publicamente no Fórum romano, para que todos pudessem lê-la e fazê-la cumprir. Há muito de lenda, claro, na história acima contada, que visa glorificar a famosa Lei romana e os seus autores. Mas que é uma lenda bonita, isso é.

É verdade também que, destruídas na invasão gaulesa de 390 a.C., o famoso “Saque de Roma”, depois novamente e definitivamente vandalizadas com as “Invasões Bárbaras”, as tais “Doze Tábuas” não chegaram até nós. Nós as conhecemos, como lembra o mesmo Jean-Marie Carbasse, “através de elementos esparsos e de citações, mais ou menos exatas, de diversos juristas posteriores, o que torna bem problemática a reconstrução do seu texto”.

Entretanto, é possível afirmar algumas coisas sobre o conteúdo da “Lei das Doze Tábuas”. Com a ajuda de Michael H. Roffer e de seu livro “The Law Book: from Hammurabi to the International Criminal Court, 250 Milestones in the History of Law” (Sterling Publishng Co., 2015), é possível dizer que elas “tratavam tanto do direito material como do direito processual. O direito processual versava sobre como iniciar uma ação judicial via procedimentos orais, como tratar as testemunhas, como executar os julgamentos, entre outros tópicos. O direito material incluía a validade do princípio costumeiro que permitia a escravidão por dívidas assim como as penalidades por homicídio doloso e culposo. As Tábuas também tratavam da compensação por injúrias pessoais e danos à propriedade. Apenas três crimes nas “Doze Tábuas” eram punidos com a pena de morte: corrupção/suborno, traição e difamação”. Somem-se a isso disposições sobre bens e pessoas, a organização familiar, os cultos públicos e muitos outros assuntos tratados pelo direito.

Por fim, o mais importante: por haver reconhecido aos cidadãos romanos direitos precisos, permitindo o ajuizamento de uma ação e a atuação de um magistrado dentro de um devido processo legal (quando não respeitados os referidos direitos), a “Lei das Doze Tábuas” instituiu em Roma, minimamente, levando sempre em consideração as condições históricas da época, um “estado de direito”. Esse é, sem dúvida, para além do seu conteúdo, o seu maior mérito.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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