AS DORES DO MUNDO –

Eu estava no meio da Amazônia, acomodado na cama da pousada depois de um dia de trabalho exaustivo pela selva, quando uma amiga querida me ligou chateada com problemas pessoais, relação amorosa morna e outras coisas comuns do cotidiano. Não aguentava mais a censura de todo mundo – ela pagava o pato por ser uma mulher com a cabeça muito além das fronteiras da cidadezinha em que vivia, nos pampas.

Estava cansada daquilo tudo e decidida a aceitar o convite para morar na Itália. Queria desabafar, ouvir minha opinião. Como não tenho competência para dar respostas, recomendei a leitura de Advertência aos incautos, crônica de Antônio Maria publicada no livro Seja feliz e faça os outros felizes, que estava por feliz coincidência ali em minha cabeceira.

Escrita nos anos 1960 pela letra passional de Maria, talvez um dos mais sensíveis observadores do cotidiano brasileiro daqueles tempos, continuava mais do que atual:

A vida ensina que a gente se deve dar com o menor número possível de pessoas e frequentá-las cada vez menos. Isto porque o “próximo” de um modo geral não nos acrescenta nada e, quase sempre, tira.

Sem querer dizer que o “próximo” seja, invariavelmente, um infeliz, não podemos calar que, entre dez “próximos”, oito são infelizes. Não infelizes porque lhes faltem pernas, braços, olhos, cabelos ou orelhas. São infelizes por dentro, porque lhes faltam afeto, generosidade e bom gosto. Com um infeliz não se pode conviver cinco minutos. Ele chega muito amável, mas, daí a pouco, sem se conter, dirá alguma coisa que nos desgoste. Dirá, por exemplo, que alguém disse “isso e aquilo” de nós. Ou então, dirá ele, fazendo a ressalva dos infelizes:

– Quer que eu lhe fale com absoluta franqueza? Você está com uma cor muito feia. Por que não procura um especialista?

Entre os seus conhecidos, marque bem os infelizes. Evite-os e, não sendo possível, vista-se de uma couraça que proteja sua sensibilidade, sua paz contra o que eles irão dizer.

Há mulheres que são especialistas em perguntar às outras:

– Outro dia, quando você estava no bar com seu marido, você estava loura, não estava?

É por isso que eu gosto de chuva e, quando chove, de ficar em casa, lendo e dormindo. Ah, sou contra os domingos e feriados ensolarados! Pelo meu gosto chovia, sem parar, aos sábados, domingos, bem como em todos os feriados e dias santos. De que serve torcer para abrir o sol e pegar uma praia, se na praia chegará um infeliz (com barraca e tudo) para perguntar, com cara de anjo:

– Você está mais gordo, não está?

Sempre fui uma pessoa muito prevenida contra os infelizes: eles não me atingem. Ao contrário. Como já os conheço pelos nomes e já lhes sei o grau de desgraça, adivinho o que cada um vai me dizer ou perguntar. Divirto-me com isto. Por exemplo, já fui enorme de gordo e encontrei sempre quem me dissesse:

– Quer que eu lhe seja absolutamente franco?

Nunca tive tempo de responder: “Não, não! Por favor, seja hipócrita”! Então, o infeliz usava de franqueza:

– Você precisa emagrecer. Primeiro, porque a gordura leva, fatalmente, ao câncer. Depois, porque você fica tão feio assim gordo!

O tempo andou e eu emagreci. Essas mesmas pessoas, quando me encontram, depois de duas ou três palavras disfarçadas, entram na franqueza:

– Olha aqui, como você sabe, sou de dizer aquilo que sinto. Você está muito magro. Por detrás de sua magreza, deve haver alguma coisa que o médico precisa ver. E tem mais: quando você era gordo, era muito mais bonito.

A mim, que “manjo eles”, os infelizes divertem. Mas, a quem ainda não vestiu sua armadura contra o Infeliz, gostaria de avisar que o melhor é ficar em casa, deitado, lendo, dormindo. Foi o que eu fiz esta semana. Não por temor aos infelizes, mas em prova de respeito aos burros, que também são respeitáveis e sentam sempre à nossa mesa, nesta cidade quase sempre bonita, quase nunca sossegada.

Nota importante – Em “Les Caves du Vatican”, de André Gide, Lafcádio matou Fleurissoire, numa viagem de trem, só porque este lhe pareceu profundamente infeliz.

Concordamos, minha amiga e eu, que aos infelizes falta a prudência de se olhar no espelho de quando em vez. Talvez temam enxergar tudo que fizeram de errado pela vida, todas as covardias que se impuseram ao fingir que não viam a realidade, ao empurrar com a barriga o que clamava solução urgente.

Aos infelizes, como descrito por Maria, é muito mais fácil apontar sempre o dedo na direção dos outros, como se isso pudesse mudar o que salta aos olhos de todos, aquilo que o tolo pensa que ninguém vê.

Lembro da surpresa de um amigo contratado para atuar no apoio educacional à área de gestão de pessoas de uma grande empresa. Ali ele descobriu por que os resultados nunca apareciam: pessoas infelizes não conseguem definir uma política de recursos humanos.

Mandaram fazer uma pesquisa a respeito de satisfação e o resultado jogou a lógica pelos ares: as pessoas se sentiam muito felizes trabalhando na área de tecnologia; as pessoas se sentiam muito infelizes trabalhando exatamente na área de gestão de pessoas!

A partir daquela vivência profissional, ele passou a dizer que temos a obrigação de ser felizes, mas não temos o direito de demonstrar felicidade sem correr riscos de ataques dos infelizes.

Eles estão em toda parte, como uma praga difícil de debelar. Ainda mais quando comem o superamendoim da inveja! Talvez a minha amiga tenha cometido o pecado capital: ser feliz no campeonato dos infelizes. Agiu como o atacante habilidoso que enxerga o goleiro adiantado, manda a bola por cobertura e faz um golaço do meio da rua. Mas vai pagar o preço de ser caçado em campo a partir dali.

Lembrei de outra frase daquele camarada, que também servia à amiga chateada: “Aos infelizes, sua infelicidade. E que sigam morrendo de inveja, um pouco a cada dia”.

 

*Seja feliz e faça os outros felizes

(Coletânea de crônicas de Antônio Maria, organizada pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos e publicada pela editora Civilização Brasileira)

 

 

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

As opiniões emitidas são de responsabilidade dos colaboradores

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