Em 1971 eu fui fazer um curso de extensão universitária no Rio de Janeiro. Eu e mais dois colegas engenheiros. Morávamos juntos num apartamento alugado na Rua Domingos Ferreira, em Copacabana.

Três meses depois fui morar sozinho numa quitinete localizada na Rua Paula Freitas, também em Copacabana. Não havia como conciliar a vida mundana dos dois amigos solteiros e sedentos de diversão, com a minha condição de recém-casado.

O curso funcionava, em dois turnos, na antiga Escola de Engenharia, no Largo de São Francisco, no Centro. Quando não conseguia carona, eu fazia o trajeto de casa para o curso e vice-versa, de ônibus.

Guardo lembranças de um Rio de Janeiro com resquícios bucólicos, sem violência e com o trânsito civilizado; dos bons espetáculos no Canecão, do Beco das Garrafas, de deliciosas peças teatrais e do transitar por Copacabana e Ipanema, nas madrugadas, em segurança. São reminiscências de uma excelente época, mas, voltemos ao curso.

Numa quinta-feira, após as aulas, eu e alguns amigos paramos na Cinelândia para um chope no Amarelinho. Um chope chamou outro, e mais outros, resultando numa carraspana daquelas. O resultado foi que dormi além da conta e acordei com o gosto de cabo de guarda-chuva velho na boca e, mesmo com toda a pressa imposta ao processo de levantar, arrumar e pegar a condução, eu perdi as duas primeiras aulas da manhã do dia seguinte.

No final da tarde, ao tomar o transporte para casa, eu me acomodei numa poltrona junto à janela. Na parada seguinte entra um jovem negro que sentou ao meu lado, embora houvesse outros lugares vagos no ônibus. Aquilo me deixou alerta e receoso. Até porque o jovem não era um negro, era “o negro”. Um sujeito espadaúdo, do tipo marombeiro e capoeirista. Somente, senti alguma tranquilidade, quando o ônibus lotou.

Eu estava incomodado com a presença do cidadão, razão porque resolvi descer na parada anterior a costumeira. Pedi licença para sair, mas o negro não se moveu do lugar. Passei a perna por cima das dele, e consegui sair do banco, não sem antes sentir que alguma coisa me estava sendo surrupiada.

Quase alcançando a porta de saída, percebi o negro se levantar e falar: “Moço, o senhor…”. Não me interessava o que ele tinha a dizer, eu desejava apenas me afastar do ônibus, o quanto antes, para não ser seguido.

Chegando ao apartamento, tomei um copázio d’água tentando ordenar os pensamentos, e fui revisar os meus pertences de mão. Todos pareciam em ordem, a exceção da edição novinha da revista Quadro Rodas, que desaparecera. Chave do apartamento, canetas e aliança? Ok! Relógio? Nãoooo! O meu estimado relógio digital, presente de meu pai, havia desaparecido. O que fazer? Eu pensei: nada! O que não tem remédio remediado está. Afinal, vão-se os anéis e ficam os dedos.

Semana seguinte, ao entrar no apartamento, depois de mais um estafante dia de aula visualizei, na mesa, bilhete da diarista com o dileto presente do pai servindo de peso: “Seu Narcelio, encontrei o seu relógio debaixo da cama”.

Quanto remorso eu senti! O relógio, certamente, havia escorregado do meu braço no dia da carraspana. Quanto ao jovem negro, ele desejava, tão somente, me alertar acerca da revista que escapara ao sair do ônibus. Naquele dia aprendi uma lição para o resto da vida: Prejulgamentos, jamais, porque as aparências enganam!

José Narcelio Marques Sousa é engenheiro civil e escritor –  [email protected]

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