JOSÉ DELFINO

A ALMA DE JANUÁRIO CICCO –

Tempo de vacas magras. O hospital das Clínicas em contenção de despesas. Dentre as austeras medidas, o corredor do hospital iluminado, aqui e acolá, por uma lâmpada de 40 watts. Um ambiente solitário,  escuro, um tanto lúgubre, propício, em tese, ao aparecimento de almas  do outro mundo.

Meu irmão Esaú, grande obeso à época, anestesiologista de plantão na UTI, resolve tomar um pouco de ar puro na balaustrada que dá para o oceano Atlântico, em frente e ao lado do hospital. Vai até lá, fuma um cigarro, bate um papinho com os motoristas de taxi que ainda estavam em frente ao prédio, e volta, de jaleco branco comprido até aos tornozelos, ao interior do prédio.

Ao mesmo tempo, chega uma retardatária tentando ver um familiar internado. Informada pelo porteiro da impossibilidade da visita devido o adiantada da hora, insiste e o funcionário, compadecido, dá uma alternativa. “Tá vendo aquele senhor de branco ali em frente ?  Siga-o. Quando chegar ao seu destino, a quem encontrar, exponha  o seu problema. Talvez consiga o que quer”.

A senhora não só o segue, como apressa o passo e consegue emparelhar os corpos. Inicia-se então, em princípio, um monólogo sobre a doença do parente, sobre o adiantado da hora, sobre a falta de iluminação adequada.

Lá para as tantas, ela pergunta:

– Vixe! Esse negócio aqui dá um medo … O senhor tem medo de alma?

Esaú encara-a pela primeira vez, e responde:

– Quando eu era vivo, sim. Muito, minha senhora.

A mulher arregala os olhos, dá um grito estrondoso e volta correndo pra rua. Esaú, aparentemente sem explicação, também corre de volta à UTI. No outro dia, o comentário no hospital: “A alma do Dr Januário Cicco apareceu ontem por aqui, por volta das 21:00 horas. Trocou a visita que ele sempre faz na madrugada das quintas-feiras à Maternidade-Escola”.

Confirmada a ocorrência do fato, Esaú me disse, justificando:

– Você queria o que? Corri, sim! Fiquei com medo. Pensei que era uma alma.

De repente, dessas argamassas, são construídas as lendas urbanas.

José DelfinoMédico, poeta e músico

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