ADAUTO CARVALHO

UMA REPÚBLICA SEM BRASILIDADE – 

Hoje o Brasil vive um dos momentos mais paradoxais da história da República. O segundo impeachment presidencial em trinta anos, um fato sem precedente na história de qualquer país. Mas a excepcionalidade do momento não reside apenas pelo impeachment, mas pelas causas e consequências a ele relacionadas e o incerto futuro para o país decorrente da falência da República. Na briga de caciques os índios e a terra foram desconsiderados e agredidos pela total falta de brasilidade. Os três poderes mostraram a face de um país apodrecido, um esqueleto fossilizado do que poderíamos ser e, pela pouca consciência política da sociedade e a falta de moral dos governantes, em todas as esferas e níveis, um ectoplasma a vaguear sem rumo, sem destino e com muitas armadilhas a dificultarem o cambaleado caminhar. As ruas, certamente, estarão lotadas e muitas badernas foram anunciadas e as autoridades estão pagando para ver. Sempre foi assim, sempre será assim. A sanha do golpismo a tudo devasta e se torna o paradoxo principal. Não tem como superar o dia de hoje sem traumas profundos na vida pública do país.

O Partido dos trabalhadores dá seus últimos suspiros e, ao contrário do que prega, da forma mais agressiva e não republicana. A democracia que reclamam está se esvaindo em atos de vandalismo em prática em todo um país. Um partido que se diz democrático não pode utilizar o expediente da força da insensatez. A oposição, superficial e sem referência moral, faz parte do momento como um zumbi que não sabe o que quer ou para onde ir perdido em uma realidade que a desclassifica e a torna meramente simbólica. Vândalos e zumbis serão os protagonistas dos atos a serem praticados hoje e, se a presidente for afastada ou não, conviverão, a partir de amanhã, com os cacos a que apequenaram a república. O povo nas ruas sempre é positivo, mas nem sempre significativo. Os blocos verde e amarelo e o vermelho se aprontam para uma luta que não sabem o que significa. Todos gritam as mesmas palavras de ordem.

A mesma insensatez comum a um povo marcado, um povo sem altivez, um povo falsamente feliz. A diferença está no comportamento social. Ameaçarem a nação é uma prova de imaturidade política e apego a um poder que imaginavam propriedade. Deram com a cara no poste. Esse é o resumo. Alguns cadáveres ficarão estirados nas ruas e símbolos de movimentos sem causas e causas sem movimentos. Desde que se instalou o caos (ou tornou visível) não se conhece de uma agenda positiva voltada para o país. Os cordões, como Narciso, só olham para si e o país e seu condolente futuro é apenas um detalhe que, há muitos anos permanece soterrado por interesses corporativistas e particulares e sobreviveu aos trancos e barrancos à mercê de propagandas enganosas de um marketing político que transformam (e transformaram) anjos em demônios e, hoje, com os marqueteiros presos, se defrontam com a mais triste realidade.

O Brasil e suas autoridades constituídas, como uma prática contumaz, caminham em sentido contrário e desconhecem a realidade que permeia o país há décadas e se instalou de vez no atual governo. Não estou afirmando que a atual crise é de responsabilidade do atual governo, mas é inegável que ele a tornou mais grave pela ausência de lideranças estadistas e de planos estratégicos de gestão. Não se administra escondendo ou maculando a realidade. É um conhecimento básico de gestão em qualquer aspecto ou ramo de atividade. E o atual governo, no afã de se manter no poder, usou de todos os recursos de maquiagem dos controles contábeis, inclusive contrários aos pressupostos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), sem qualquer preocupação com a ilegalidade, e o resultado é uma crise sem precedentes que, pela sua abrangência, se torna difícil identificar o componente mais grave.

Os erros começam e terminam na educação. Somos um povo com baixíssima consciência política e uma visão deformada do Estado. Os problemas políticos, por isso, se tornam polarizados e com forte dose de passionalidade. O Brasileiro não pensa no Estado Brasileiro. A visão política se confunde com a militância política. As verdades ou mentiras sobre o Estado são informadas pelos governos e seus governantes, geralmente corporativistas e personalistas e assim o tempo civilizacional passa e o Estado se atrasa pela ignorância da própria sociedade, governantes e governados. O atual momento é a maior prova disso. O Estado foi saqueado de forma vergonhosa e descarada e a passionalidade do povo macula o crime e justifica os erros de algumas autoridades com os erros de outras e tudo vira uma grande arenga nacional. O termo “arenga” (e sua nordestinidade) foi proposital. A sociedade confunde os papéis do Estado e do governo, culpas e partidarismo e o pastelão está formado. O Brasil se torna um grande palco de comédia quando, em verdade, a tragédia é travestida pela inconsciência social.

A soberania já foi.

O segundo fundamento do Estado Brasileiro previsto na Constituição Federal é a CIDADANIA. Não ria. Não é piada. É pressuposto Constitucional. Se hoje é sinonimia de piada a culpa é sua, nossa, por entregarmos cheque em branco a todo salvador da pátria que ilude a cidadania com argumentos amarelados pela banalidade e com o sorriso tão sincero quando o das hienas. Há palavras que de tão repetidas e de forma vã perdem o seu real significado. É o caso, no Brasil, da palavra cidadania. É discurso político panfletário para todos os partidos: centro, direita, esquerda, volver! Todos são exemplos caricatos da verdadeira conotação do termo. É a representação perfeita de um papel que precisaria de menos dramaturgia e mais liturgia. Cidadania, mais que o discurso, deveria ser a prática, o rito cotidiano daqueles que buscam interpretá-la com o talento da mesquinharia e desonestidade pessoal e de propósitos corporativos.

Aqui não há ideologia. O pluripartidarismo consagrado na Constituição Federal, que seria um dos vetores da nossa cidadania ativa, virou pluricorporativismo ou, na prática, a negação da representatividade popular e o tribalismo dos partidos políticos e seus caciques e morubixabas. O poder nacional é uma grande deformidade ideológica. Mudam-se as pessoas e os partidos e as plataformas, mas a divisão do poder permanece inalterada. A situação (aqueles que estão no poder) e a oposição (aqueles que momentaneamente não estão no poder), aguardando a troca de turnos, se compadria e juntam forças ao sabor dos seus interesses, sabem-se lá quais. Ou será que sabemos e fechamos os olhos por ser mais simples, mais fácil, mais parcimonioso. João Cabral de Melo Neto, o poeta sem alma, em sua verve crua e realista, nos mostra há tempos “que o Brasileiro é uma mistura de acomodação e esperança” e assim continuamos a viver a insensatez de uma República sem qualquer vestígio de estadismo, brasilidade e decoro. Todos são cúmplices e culpados.

Adauto José de Carvalho Filho – AFRFB aposentado, pedagogo, Contador, Bacharel em Direito, Consultor de Empresas, Escritor e poeta.

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